O sr. propôs a Lei da Reforma Psiquiátrica que promoveu mudanças profundas na forma de tratamento das pessoas com doenças mentais. Como surgiu essa proposta e quais eram os objetivos principais?
– Olha, nos anos 80 o Brasil vivia uma situação muito forte de reformas, era o processo de desmilitarização da política, regressão da ditadura, criação do sistema democrático e convocação da Assembleia Constituinte.
Então, eu diria que aquele ambiente de redemocratização de certa forma me contaminou clinicamente e eu comecei a conversar com colegas, com médicos e todos os profissionais da área, familiares, pacientes que eu conseguia falar e nasceu então o projeto.
Ele ficou 12 anos em tramitação?
– Ele entrou na Câmara dos Deputados logo no ano do pós-constituinte, em 1989, ali na Câmara, ficou quatro anos. Depois ele ficou quase 8 anos aqui no Senado.
E o sr. acompanhando tudo de perto..
– Por 3 mandatos eu era o deputado dos loucos, o deputado da reforma psiquiátrica. Veio para o Senado e foi aprovado. Nós tivemos uma discussão grande, vários relatores e audiências públicas, foi um fato importante nos anos 90 porque foi a primeira vez que os doentes mentais vieram ao Congresso Nacional organizadamente.
Como foi isso?
– Ah, foi lindo. Eles ficaram muito impressionados com a maneira como foram tratados, porque eram homens de terno e tinha poucas mulheres e os ternos eram escuros. Eles ficavam impressionados porque eles saiam do ambiente de homens de branco, que davam injeções, que botavam eles em clausuras, às vezes por punição. O tratamento moral existia e existe ainda nos hospícios e aqui, eles tiveram uma outra visão da cidadania, me perguntavam, mas deputados, por que o terno?
Então, é isso que a gente tem que fazer também com o mundo de vocês, o médico tem que ouvir vocês, o enfermeiro, o terapeuta social vocês têm que falar do seu sofrimento e eles achavam aquilo incrível.
De onde eles vieram?
Do Brasil todo, alguns estados vieram mais, até do Amazonas veio, nós conseguimos trazer ouvintes e delegados para o Congresso.
A lei encontrou muita resistência por parte do sistema de saúde mental da época?
Na verdade, o SUS na época era chamado INAMPS, vamos dizer é o avô do SUS e o INAMPS tinha uma forma de remunerar a internação e quanto mais tempo a pessoa ficasse internado mais o hospital ganhava. Então era um problema de hotelaria ruim, com remédios ruins, diagnósticos apressados, sem ouvir direito o paciente. O poder de internação era da família ou de algum adulto que se responsabilizava, às vezes até da polícia, quando alguém entrava em surto à noite e era o corpo de bombeiro que era chamado.
Então, a lei não é uma lei médica, todos me cobraram, mas, Paulo você não é médico. Eu sou paciente, poxa, quem é paciente às vezes sabe mais que um médico. O paciente relata o que tem, o médico orienta o paciente na sua conduta. Por que para um doente mental isso não é possível alguém que o médico não tem paciência de ouvir o doente mental? Por que ele vai fazer o diagnóstico apressadamente? Aí nós criamos a ideia da descentralização, de que tinha que ter outros profissionais, da multidisciplinaridade.
Como o sr. avalia hoje a implementação dos princípios originais da reforma psiquiátrica?
Olha melhorou nesses 22 anos, vamos dizer que a lei não predomina, mas aquele passado não domina mais. O grande problema hoje que eu vejo é a descontinuidade administrativa. É que o Brasil é uma federação, ele tem 27 estados e mais de 5.000 municípios. Então são cinco mil cabeças de prefeitos e secretários de saúde. Temos a União, a capital, o presidente e o Ministério da Saúde.
Quando você tem uma harmonia da maioria dos setores, a lei avança. Aí nascem os CAPS, que é o Centro de Atenção Psicossocial. Nasce o Serviço de Rua, eu tenho também que atender esse pessoal que tá na rua porque às vezes estão com problemas mentais ou às vezes adquirem na rua problemas mentais. Então eu preciso ter o serviço, mas não pode ser um serviço de captura, tem que ser um serviço de atenção.
Eu tenho que passar com uma ambulância ou um automóvel que seja, um consultório ambulante móvel, eu tenho que passar ali num viaduto onde tem pessoas dormindo e ali tem uma briga ali, tem um tumulto, ali tem um risco de um machucar o outros. Às vezes é um problema psiquiátrico, mas não necessariamente, porque nem todo sofrimento humano é de natureza mental. Então, para aplicar essa lei, eu preciso focar mais no humanismo da lei do que na técnica. Eu diria que o paciente mental é o mais abandonado dos abandonados.
A lei da reforma psiquiátrica vai completar 22 anos agora em abril. Quais foram as maiores conquistas?
– Olha a transição do modelo fechado para o aberto começou, ele está bem avançado, ou seja, o hospital psiquiátrico fechado, o manicômio, não predomina mais. Então, hoje predomina o outro serviço, o aberto, mas os recursos não migram de maneira fácil. Os governos travam a migração do recurso do sistema fechado para o aberto porque o sistema hospitalar é muito forte, é uma instituição fechada, como quartéis, mas agora que estão melhorando.
Eles preparam os hospitais para emergências. Evidente que evoluem, a medicina evoluiu os remédios, mas a farmácia popular ainda não tem remédios psiquiátricos no volume e na qualidade que os nossos pacientes brasileiros precisam. Então há muitas lacunas no cumprimento da lei. A outra, é a ideia de que você tem que isolar o paciente da vida dele. Esse, hoje, para mim, é um dos maiores problemas que vejo na lei. Esse conflito entre a cura e a tutela. Você pode curar sem tutelar e você pode também preparar uma pessoa para que ela conheça o seu problema o máximo possível, sem necessidade de encarceramento ou de isolamento, de desterritorializar.
Porque quanto mais você distancia o paciente do lugar onde ele vive e conhece as pessoas, mas ele pode ter surtos, mais ele pode se sentir abandonado, mais ele pode sofrer. Então, tenho muita esperança e a cada governo que começa eu tenho sempre a esperança de que a coisa melhore.