Entrevista com Israel Almeida de Oliveira

Integrante do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial e usuário dos serviços psiquiátricos

Como surgiu o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial e em que momento você se engajou na causa?

O movimento da luta antimanicomial começa através da luta dos trabalhadores de saúde mental, que é em prol da reforma psiquiátrica, que começou lá pelos anos 60 e que vai ter uma visibilidade maior após a visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que visita o Hospital de Barbacena em Minas Gerais e compara aquele lugar a um campo de concentração nazista pelo oferecimento do tratamento para aquelas pessoas nos anos 60, era totalmente desumano. Basaglia era a pessoa que começou a prestar um tratamento humanizado para as pessoas internadas dentro dos hospitais psiquiátricos.

Ele traz para o Brasil a ideia de um tratamento mais humanizado para as pessoas com sofrimento psíquico e através de toda essa mobilização dos trabalhadores de saúde mental à época até chegar em 1987 no encontro de Baurú. Nesse encontro, é deliberado o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Até então essa luta era mais exclusiva dos trabalhadores da época que não tinha muito como incluir tantos usuários e familiares que era fundamental para esse processo de luta. A partir desse encontro, se juntaram familiares, usuários e trabalhadores para implementar um serviço humanitário que alcance todo o território nacional

 É importante dizer que o movimento antimanicomial não tem um único protagonista, são vários atores que se envolvem na história com o decorrer do tempo até chegar a mim. Na verdade, eu conheço o Movimento por conta do meu problema. Eu fazia uso abusivo de drogas, especificamente o crack. Tentei antes de chegar ao caps ir as comunidades terapêuticas. Como não tinha informações de onde buscar atendimento para o meu problema, acabei caindo nessas armadilhas e descobri nesse espaço que não havia nenhum cuidado ofertado, apenas doutrinação religiosa, trabalho forçado, punições violentas. Não era de graça, era tudo pago nessas comunidades terapêuticas. Eu me frustrei com esse tratamento e eu saí de lá e voltei pra rua.

Hoje em dia eu tô bem e as pessoas não têm interesse de saber onde buscar um tratamento e por conta dos 4 anos que passaram no governo Bolsonaro, infelizmente as políticas de saúde mental ficaram completamente sem financiamento e sucateadas.

Duas das principais bandeiras de luta do Movimento Antimanicomial são a defesa do SUS e a Reforma Psiquiátrica. Como você avalia hoje essas duas questões?

A minha avaliação é de que nós ainda temos muito que avançar, não apenas porque depois do golpe de 2016, no governo Bolsonaro, mas antes disso, havia falta de um financiamento pra toda área da saúde como um todo. É importante antes dizer que a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) começa na atenção primária, ela não é só CAPS, a Unidade de Acolhimento, nem é só a Residência Terapêutica, ela também é UBS, é o hospital de emergência, é hospital de especialidade. Ela envolve toda a saúde. Pensando assim, a saúde mental infelizmente não é uma prioridade. Ainda hoje ela encontra ainda muitos espaços semelhantes aos antigos hospitais.

 No Sus a gente precisa de muita luta, de todos os movimentos sociais, de trabalhadores, familiares e usuários todos organizados para reivindicar apoio para essas políticas tão necessárias para toda a sociedade brasileira.

A autonomia e os direitos básicos dos pacientes mentais são prioridades para o Movimento da Luta Antimanicomial?

Com certeza, todo nosso trabalho reside no cuidado em liberdade, a gente não acredita em aprisionamento das pessoas por qualquer motivo que for. A gente acredita que o tratamento tem que ser dado dentro do território. Como eu falei, de toda essa Rede de Atenção Psicossocial, cada serviço desses, é para atender a demanda da pessoa que estiver na situação de vulnerabilidade, para ajudar ela a se organizar e poder seguir com a vida. Os serviços de atenção psicossocial não têm o objetivo de tutelar a pessoas pra que ela fique pra sempre no serviço. O objetivo é garantir que essa pessoa tenha autonomia e consiga, após um período dentro do serviço, caminhar com as próprias pernas e seguia a vida.

Trabalho e renda para essa parcela da população são fundamentais. Quais são as maiores dificuldades que eles enfrentam para se incluírem no mercado de trabalho?

Acho principalmente que, por causa do preconceito. Se a gente tiver um diagnóstico de transtorno mental, pesa muito na hora de uma entrevista para emprego. A empresa vai ficar com um pé atrás porque vai achar que vai custar mais. Num caso como eu, que sou um dependente químico, que alcancei um controle no meu uso abusivo, tenho que estar consciente e constantemente vigilante quanto a isso pra não ter recaídas, mas a pessoa que usuária de drogas é extremamente marginalizada e criminalizada, independente dela ter parado o uso de drogas.

A desospitalização das pessoas com transtornos mentais tem se mostrado mais eficiente na recuperação dos pacientes. A saída seriam os serviços substitutivos?

Eu não tenho dúvida disso, como eu falei, sou do segmento de usuário e eu entro na luta antimanicomial por reconhecer que os Centros de Atenção Psicossocial não têm muito reconhecimento onde vivo, em Macapá, mas todos aqueles trabalhadores, mesmo sem ter muito suporte, conseguiram-me a ajudar a aprender a me relacionar com a droga e conseguir caminho para controlar esse uso abusivo. Então, eu tenho certeza absoluta que pra encontrar um caminho para as demandas psicológicas, só os serviços substitutivos porque eles têm os profissionais qualificados para atender a demanda que está chegando, diferentemente de você chegar numa comunidade terapêutica ou em um hospital geral, em que as pessoas vão querer te tratar igual a qualquer caso de emergência que chega lá. Dentro de um Caps, você vai ter o acompanhamento de vários profissionais que vão te ajudar sim, mas, claro, é necessário financiamento porque não adianta o trabalhador colocar todo seu conhecimento e prática se ele não tem uma estrutura pra trabalhar. A parte do governo é financiar a estrutura e ver o salário do trabalhador para que ele faça um bom trabalho.

Parte dos recursos financeiros para atendimento às pessoas com problemas com álcool de drogas têm sido direcionados às comunidades terapêuticas. Como você avalia o trabalho dessas comunidades?

O trabalho na comunidade terapêutica não tem nenhuma comprovação científica que ajude no problema de uso abusivo de drogas. Um relatório recente do CFP (Conselho Federal de Psicologia), de 2017 e do CNDH, Conselho Nacional dos Direitos Humanos mostra um estudo em que lá foram encontradas inúmeras violações de direitos, como tortura física, trabalho escravo, abuso sexual, cárcere privado. Essa lógica da comunidade terapêutica não devia nem existir na minha opinião e é um absurdo que tanto dinheiro público vá pra essas instituições privadas que nem prestam conta desse dinheiro.

O que você acha que deveria ser feito para responsabilizar essas empresas?

A gente tem que criar instrumentos permanentes de fiscalização para ver se estão realmente cumprindo o que o regulamento estabelece. Caso contrário, se deveria responsabilizar os donos judicialmente, junto com as pessoas que estão cometendo o crime. Às vezes o dono não está ali. Tem pessoas que acham que os usuários de droga merecem todo o sofrimento que está passando e não é por aí. As pessoas estão na rua usando drogas, na maioria das vezes, é por falta de oportunidade, não por sem-vergonhice, por falta de vontade

A população de rua é um dos mais graves problemas sociais que não tem sido enfrentado adequadamente por vários governos. Sabemos que há muitos casos de pessoas com transtornos mentais que vivem em condição de rua. Como vocês vem enfrentando essa questão?

É importante dizer que nós temos a competência de levantar as demandas e buscar o Legislativo com essas estatísticas para ver que providências eles devem tomar. Dentro da nossa possibilidade, toda vez que chega algum irmão em situação de rua, a gente busca apoiar através do esforço coletivo.  Porque nós não recebemos financiamento de nenhum órgão governamental. Precisa de algum financiamento, a gente faz entre nós mesmos, é vaquinha, a gente tenta vender uma camisa para levantar o dinheiro que a gente precisa. Então, a gente faz o que está ao nosso alcance para tentar minimizar o sofrimento desse irmão, mas a gente entende que essa responsabilidade é inteira do Estado, promover política de assistência social e realmente dar conta da demanda da população de rua.

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Celio Calmon

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