Por: Lara Larroyed – Psicóloga e Designer Gráfica – No nosso último texto do ABC do Vício, exploramos o porquê de ser importante ter um tratamento centralizado na relação do sujeito com as substâncias.
Nossa pergunta motivadora foi “por que as pessoas bebem?” e já conseguimos responder que: (1) bebem atrás de uma sensação que provoca algum tipo de sentimento bom (ex: me sinto desinibido e por isso me sinto bem) ou (2) porque alivia um sentimento ruim (ex: estou desempregado e quando esqueço disso me sinto bem). Continuando o raciocínio, podemos ver que as experiências com as drogas não tem apenas um significado, mas vários, que podem entrar em choque uns com os outros (ex: beber faz com que eu me sinta bem pela desinibição, mas me leva a ter atitudes das quais eu sinto vergonha).
O desafio dos profissionais da saúde que lidam com o vício não é apenas decodificar os significados existentes que são prejudiciais ao paciente, mas também estimular e enriquecer a vida dele para que ele consiga expressar estas necessidades de maneira saudável.
Este é um trabalho altamente especializado e cuidadoso, pois requer que a profissional consiga:
- Ter acesso ao paciente;
- Fazer a anamnese para entender o seu contexto biopsicossocial
- Investigar como é o seu padrão de uso de substâncias e seus significados;
- Desenvolver confiança e vínculo terapêutico para que o paciente esteja aberto a ajuda;
- Desenhar um plano de rotina que suplemente as reações do vício (diversão, alívio, manutenção de estresse) de outras maneiras;
- Encaminhar o paciente para médicos e psiquiatras caso sua condição precise também de estratégia medicamentosa;
- Estabeleça um tratamento de longo prazo em que poderá ser acionada pelo paciente quando precisar de ajuda (ainda mais considerando que o vício é um estado considerado crônico, e, portanto, não tem cura definitiva, apenas manutenção);
Em outras palavras, o tratamento às drogas é uma perspectiva diferente dos conceitos medicalistas de saúde e doença. Não está localizada em um órgão, não pode ser tratada com uma vacina, não tem pílula que sare. Está centrada na pessoa e está vinculada não à saúde física, mas à saúde mental.
Por esse e vários outros motivos (inclusive econômicos) o tratamento para os vícios costuma ser longo, difícil e mal capacitado. O aparato estatal não consegue suprir a demanda que da saúde mental, que é por si só disruptiva para os sistemas convencionais de tratamento (ex: hospital) em que os médicos não são capacitados para o manejo interpessoal dos pacientes (psicologia hospitalar), não consideram os indivíduos como agentes ativos da cura e diagnóstico (visão integral da saúde) e não sabem colaborar com outros profissionais da saúde para o tratamento dos pacientes (equipes multiprofissionais).
Em outros lugares especializados, como os CAPS (Centros de Atenção Biopsicossocial), os centros são mal equipados e vulneráveis ao clima político, que prioriza ou não a saúde mental, para lidar com pacientes instáveis e de contextos socioeconômicos vulneráveis. Por fim, a pobreza e desigualdade são fatores de risco para o vício e fazem parte do ecossistema psicológico que faz com que ele se mantenha.
Até agora usamos o álcool como exemplo, por ser a droga mais utilizada no Brasil para uso recreativo e, portanto, com a maior porcentagem de dependentes, mas passemos para outra substância mais periculosa em termos de dependência e fragilidade social: o crack.
Leon Garcia, psiquiatra e ex-coordenador-adjunto de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, realizou trabalhos com a população em situação de rua, a mais associada ao consumo do crack, e ilustra o porquê devemos ter cautela ao analisar as relações complexas entre a violência, o tráfico e os dependentes químicos.
Uma pessoa em situação de rua, que está em contexto socialmente frágil (em termos materiais, o mais frágil de todos) e está exposta à violência (literalmente) 24 horas por dia, pode ver no uso e abuso de substâncias, como o crack e o álcool, uma maneira de mediar suas relações com uma existência precária. Se sentem mais ameaçadores, relaxados, se esquecem do medo, da fome, da sede e têm facilidade no acesso de produtos baratos. A dependência não é apenas a causa de as pessoas irem morar na rua, mas também uma consequência de se estar nela.
A partir daí, pelas interdependências complexas que mencionamos antes, criam-se sistemas de uso e repertórios comportamentais que geram identidade.
“Não se está mais na rua, eu sou da rua. Eu só sei morar na rua. Beber é o comportamento do meu repertório para o medo. Usar crack é o comportamento do meu repertório para a desesperança. Eu não sei ser de outro jeito“.
Caso você tenha dificuldade de entender a importância de uma substância no contexto social para as nossas relações e identidades, tomemos como exemplo algo mais próximo da nossa realidade: o café.
“É gostoso? Talvez não de primeira, mas se aprende a gostar. Os meus pais tomavam todos os dias quando era criança. Quer um gole? Não. Quer um gole? Não. Quer um gole? Ah, aceito. Tomava ocasionalmente, qual o mal. Entrei na faculdade, os prazos começam a bater à porta e algumas noites vão ter que ser esticadas. Vou tomar um pouco para ficar acordada, só quando precisar. Me encontrava com os amigos e eles sempre queriam estudar em cafeterias. Comecei a experimentar. Visitava as tias no final de semana e ela oferecia o de sempre: pão de queijo com café. Boa combinação. Um pouco eu tomo.
Mais noites longas, mais cafezinhos estratégicos. Depois do almoço, bate uma preguiça. O que combina com preguiça? Café. Se tornou um pequeno ritual de coragem: depois do almoço, um cafezinho para voltar a ser gente.
Só que depois de um tempo, aconteceu uma fatalidade: comecei a ter insônia. Decidi tentar parar para ver se ajudava.
Dor de cabeça. Náusea. Uma sensação de vazio imensa quando bate a siesta sem um cafezinho. Na casa da minha tia e com meus amigos eu custava a recusar. Pedia suco. Que é gostoso. Mas não é café. Tudo ficou meio sem graça e a insônia não passava. Estava sempre ansiosa e achava difícil focar nas coisas. Antes de dormir fico acesa, mas quando acordo passo o dia cansada. E agora?”
Caso fôssemos analisar esse vício em café como um fato estritamente biológico, esta pessoa passaria por um período de abstinência em que sofreria da falta química da cafeína no corpo (dores de cabeça, desconforto, cansaço) até o sistema nervoso regular essa falta e ela conseguir voltar aos seus padrões comportamentais antes de tomar café (dormir cedo, acordar bem-disposta). Porém, uma análise mais cuidadosa apontaria outros fatos que antecederam o vício.
Primeiro, ele é uma ocasião social na cultura e na família (cafeteria, casa dos pais, casa da tia) que faz com que se possa compartilhar experiências com pessoas importantes. Segundo, ele ajudou a resolver um cansaço que vinha da faculdade e de uma rotina demandante em que os níveis normais de energia e atenção não estavam sendo suficientes. Terceiro, o cotidiano desta pessoa foi modificado pelo uso do café, agora ela tem picos de energia e atenção diferentes do que tinha antes, mas não foram achados estímulos que substituam esta falta.
Uma análise ainda mais profunda, também nos diria que vivemos em uma cultura que hipervaloriza a produção e, entre dormir bem ou melhorar o rendimento, melhorar o rendimento se mostrou mais significativo.
Então, o café – uma substância que até então era vista como “neutra”, estritamente química – se revelou também um marcador de desempenho, motivação e aumento de produtividade.
Mais uma vez, a relação da substância com o indivíduo se mostra decisiva para o vício.
Por isso, o tratamento da adicção é e deve ser uma análise multifatorial, centrada na pessoa. Assim como as terapias convencionais, o melhor preditor de sucesso de longo prazo de um tratamento é o vínculo terapêutico com o profissional e a qualidade das redes de apoio do indivíduo. O problema das drogas só pode ser eficiente quando tratado de maneira coletiva porque ele é um sintoma social.
Agora podemos ir para o próximo passo: como fazer esse tratamento em larga escala, quais os princípios que vão guiar estes tratamentos e quais as alternativas públicas e privadas que temos hoje?
Leia no próximo texto do ABC do Vício, clicando aqui.
Referências
De Camargo Ferreira Adorno, R. (2008). Uso de álcool e drogas e contextos sociais da violência. SMAD. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool E Drogas, 4(1), 01. https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v4i1p01-10
Jafelice, G. T., & Marcolan, J. F. (2018). The multiprofessional work in the Psychosocial Care Centers of São Paulo State. Revista Brasileira De Enfermagem, 71(suppl 5), 2131–2138. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0300
Pimentel, A., & De Nazareth Rodrigues Malcher De Oliveira Silva, M. (2020). Saúde psíquica em tempos de Corona vírus. Research, Society and Development, 9(7), e11973602. https://doi.org/10.33448/rsd-v9i7.3602
Rádio Band News FM. (2023, December 20). Como as doenças mentais contribuem para o aumento da população de rua no Brasil? l HUMANAMENTE [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=1Pd6GnvvRmk
Schimith, P. B., Murta, G. a. V., & De Queiróz, S. S. (2019). A abordagem dos termos dependência química, toxicomania e drogadição no campo da Psicologia brasileira. Psicologia Usp, 30. https://doi.org/10.1590/0103-6564e180085
Sociedade Brasileira de Clínica Médica. (n.d.). Brasil é o maior mercado consumidor de crack do mundo, aponta estudo. https://www.sbcm.org.br/v2/index.php/notícias/2534-brasil-e-o-maior-mercado-consumidor-de-crack-do-mundo-aponta-estudo