ABC do Vício: como tratamos?


Por: Lara Larroyed – Psicóloga e Designer Gráfica – Desde o início da nossa série, tivemos muito cuidado para garantir que estamos sempre falando a mesma linguagem. Do que estamos chamando de drogas, de vício e, agora, de tratamento. O porquê isso é tão importante: pelo tratamento dos vícios serem longos, multifatoriais e envolverem fragilidades de todos os envolvidos (mesmo os familiares e amigos não-dependentes) é fácil perder de vista qual o objetivo final do tratamento. Como assim?

Ficamos tão preocupados em ajudar, ajudar sempre e ajudar certo, cumprir nosso dever e garantir que a outra pessoa esteja bem que podemos acabar nos tornando ansiosos ou controladores com quem precisa. Queremos tanto o melhor para o outro que não deixamos com que o processo da cura se desenvolva com tranquilidade ou com o espaço de autonomia, para garantir que ele vai se manter. Então, antes de iniciar ou recomendar qualquer tratamento para outra pessoa, é importante que tenhamos em mente três pontos:

  1. O outro continua sendo o outro, que não sou eu;
  2. Eu continuo sendo eu, que não sou o outro;
  3. Estamos neste processo para sermos felizes e saudáveis;

Não coloque pressão excessiva nem em si, nem em seu familiar/amigo dependente. Este é um processo imperfeito, e isso não o torna errado. O torna humano.

O que é um tratamento de adicção?

No geral, definimos o tratamento como engajamento, retenção e modificação de um comportamento relacionado ao problema. No caso da adicção, queremos que a pessoa supere sua dependência química e psicológica da substância para conseguir manejar as próprias emoções e sentimentos. Para algumas pessoas, esse manejo pode ser um rearranjo do uso, para outras, significa abstinência.

Aqui chegamos em um ponto delicado, porque temos defensores da abstinência que negam a possibilidade de um uso consciente ou de uso de substâncias alternativas (redução de danos) ser possível. Para eles, o vício se caracteriza como uma falta de controle sobre o próprio comportamento depois do consumo da substância em questão e não pode ser “reduzido” ou “remanejado”, ele deve ser extinto.

Aqui vale lembrar do nosso primeiro texto da série em que falamos sobre a terminologia das “drogas” e como esse é um termo guarda-chuva para muitas substâncias diferentes. O consumo de químicos diferentes em pessoas diferentes vai levar a resultados diferentes. Essa é uma nuance que os profissionais da saúde precisam entender.

Exemplo: o álcool é, no Brasil, a substância que mais causa dependência. Quase todos nós conhecemos um/uma alcoólatra. E, quase todos nós, já abusamos do álcool em algum momento de nossas vidas. Convivemos com o álcool e ele faz parte de uma série de rituais importantes em nossas vidas sociais e familiares. Alguns conseguem fazer o uso dele de maneira moderada a longo prazo – mesmo que com alguns excessos pontuais – e outros não. Os casos são variados e costumam ser influenciados por fatores como genética, histórico pessoal, cultura, relacionamentos interpessoais, idade, etc.

Então, qual resposta para a pergunta “devo parar completamente e para sempre ou devo remanejar o uso dessa substância?” A resposta é “depende”. Se o remanejo for possível e te fizer mais feliz e saudável, deve ser feito o remanejo. Se a abstinência for a única relação possível, deve ser praticada a abstinência. Ambos são difíceis e ambos exigem autoconsciência e reavaliação constantes. Mas o objetivo é sempre o mesmo: ser feliz e saudável.

Quais as opções mais comuns de tratamento

Podemos listar os principais tratamentos disponíveis hoje em sete grandes categorias:

  1. Terapia Comportamental (Behavioral Therapy)
  2. Terapia Comportamental Cognitiva
  3. Terapia Motivacional
  4. Intervenções Farmacológicas
  5. Terapia dos 12 Passos
  6. Abordagem da Comunidade Terapêutica
  7. Intervenções Multi-Sistêmicas e Baseadas na Família

Elas foram listadas no artigo de Schenker and De Souza Minayo (2004), “A importância da família no tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura”. O texto foca, principalmente, em intervenções com adolescentes, por ser uma das fases do desenvolvimento com a maior tendência para o desenvolvimento de vícios. Os autores foram atrás de estudos publicados sobre o assunto em grandes sites de literatura científica e compilaram tudo nesta revisão. Eles, ainda, dão ênfase na importância da comunidade e rede de apoio na eficácia dos tratamentos para a adicção.

As intervenções, cuja base é a família, podem ter maior sucesso no engajamento, na retenção e no resultado com os adictos do que as intervenções focadas no indivíduo. Em geral, os profissionais de saúde ainda não incorporam, na sua prática, o conhecimento advindo dessas intervenções, talvez pelo parco acesso às investigações realizadas. Isso mostra que ainda há um fosso entre o mundo da pesquisa e o da prática clínica. (Schenker & De Souza Minayo, 2004)

O que devemos checar antes de considerar uma alternativa de tratamento

Primeiro e antes de tudo, não espere milagres. Duvide de qualquer programa que oferecer “resultados garantidos” e “soluções rápidas”.

Segundo, procure o tratamento com profissionais credenciados que consigam formar vínculo terapêutico com o paciente. O melhor preditor para um tratamento na área de saúde mental é o vínculo terapêutico. Afinal, problemas diferentes e pessoas diferentes vão se adaptar melhor ou pior com determinadas escolas de pensamento, porém não nos tratamos com livros e sim com pessoas. Quando confiamos em quem nos ajuda, aceitamos suas sugestões e sabemos que podemos errar em um ambiente seguro.

Terceiro, a cura não é um processo linear. Não avançamos o tempo todo do mesmo jeito e existem muitos problemas no caminho. Passamos pelo tratamento enquanto ainda temos que lidar com a vida que cerca ele, e por isso nem sempre somos a nossa versão ideal, fazemos o que é possível. E tudo bem. Permanecer tentando é infinitamente mais importante do que acertar. Se permita ter erros e perdoá-los. Nas palavras de Jung:

 “Erros são, no final das contas, fundamentos da verdade. Se um homem não sabe o que uma coisa é, já é um avanço do conhecimento saber o que ela não é.”

Como ajudar sem machucar

A mesmo vale para aqueles que estão tentando ajudar um/uma amiga ou familiar que está lidando com o vício. É sempre importante lembrar que não ajudamos ninguém ao sofrer com elas. Ou seja, é importante se manter feliz e saudável durante o tratamento de outra pessoa, pois isso também ajuda ela a perceber o porquê de estar trabalhando tanto em sua própria cura. Nossos afetos são contagiantes. Quando somos realizados e tranquilos, convidamos os outros a serem também. Damos permissão para isso. Da mesma maneira, quando somos conscientes das nossas próprias vulnerabilidades e sabemos falar sobre isso de maneira não agressiva e respeitosa, criamos espaço para que o outro faça o mesmo conosco.

Os pacientes nunca precisam de super-heróis ou heroínas, precisam de pessoas. Integralmente unidas em suas forças e fraquezas, qualidades e defeitos, luz e sombra.

Por fim: não se feche para outros tratamentos. Eles não são mutuamente excludentes e podem ser feitos, dependendo da combinação, em concorrência um com o outro. A terapia individual fortalece a comunitária, e vice-versa. Busque diversificar as opções e se manter aberto para quem quer ajudar.

Quer começar o seu tratamento na rede pública de maneira gratuita? Encontre um CAPS perto de você no endereço: https://www.saude.df.gov.br/carta-de-servicos-caps

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Referências

Schenker, M., & De Souza Minayo, M. C. (2004). A importância da família no tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Cadernos De Saúde Pública (Impresso), 20(3), 649–659. https://doi.org/10.1590/s0102-311×2004000300002

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Celio Calmon

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