Por: L. B. Larroyed.
É imprescindível dizer que o filme Os Desajustados (The Misfits) de 1961 é uma exploração profunda da maneira em que as relações interpessoais de um filme revelam as características pessoais dos personagens que a compõem.
Uma das maneiras mais convenientes de apresentar a vida interna de um papel no cinema ou no teatro é por meio da exposição. Coloca-se alguém em um diálogo em que as perguntas do público são explicitamente resolvidas, denotativativamente. São, por exemplo, as famosas cenas iniciais do protagonista sendo entrevistado pelo seu novo chefe com algumas das dúvidas que os espectadores podem ter sobre ele ou ela. De onde veio, como chegou ali, porque está lá e outras informações importantes para a continuidade prática de um roteiro, mas que pecam como recurso estético. Este tipo de exposição explícita pode ser cansativo para os cinéfilos que já a viram algumas dezenas de vezes e parecem se espelhar pouco na vida. É uma conversa que se parece com outros filmes mais do que com a realidade. A alternativa a essas exposições é o “show, don’t tell”: me mostre, não me fale. Os grandes mestres do cinema, além do teatro e da literatura, sabem fazer uso da dimensão visual como uma maneira de tirar as gorduras desnecessárias do roteiro e fazer uma exposição eficaz e menos óbvia.
Em A Primeira Noite de Um Homem (The Graduate) de 1967 vemos Ben, o protagonista virginal de charme Dustin Hoffmaniano, em uma festa que os pais fizeram para celebrar sua graduação com dificuldade de conversar e responder aos amigos mais velhos dos seus progenitores hiperatentos sobre o seu futuro. Não precisamos ouvi-lo dizer “eu não faço a menor ideia do que estou fazendo e o futuro me assusta, além de sofrer de uma falta de habilidades sociais séria”. Sabemos disso enquanto vemos seus olhos abertos e sua pele suada sem saber o que dizer. Aqui, mostra-se tudo o que precisamos em algumas ausências essenciais. Seus silêncios falam tão alto que gritam (como a música “The sound of silence” de sua trilha sonora continua nos lembrando) e, como espectadores, sentimos angústia e incerteza por ele em suas interações cheias de tropeços. Mais do que isso, A Primeira Noite de Um Homem mostra em um relacionamento, entre Ben e Sra. Robinson, os embates de duas gerações e experiências (e inexperiências) de vida em que ficam evidentes a falta de fluidez em seus diálogos. A experiente e prática Sra. Robinson persegue Ben em busca de um encontro sexual seco e direto. Ela parece não ter qualquer tipo de ilusão ou expectativa sobre aquilo além do contato físico com um homem (e mesmo suas expectativas sobre os homens parecem baixas). Coerentemente com a personalidade de sua personagem, ela não fala nada muito íntimo e, quando perguntada sobre seu passado, se sente constrangida em revisitar o início do seu casamento por ficar evidente o seu caráter puramente circunstancial. Ela se casou e abandonou a faculdade de Arte porque ficou grávida. Não sabemos como foi o processo de decisão, o que foi exigido pelos seus pais, o Sr. Robinson ou como se sentia sobre ser mãe. Sua falta de vontade de conversar e desvio das perguntas reforça a expressão no seu olhar obscurecido. As dúvidas que ficam sobre o que aconteceu são mais aterrorizantes do que qualquer resposta concreta e não precisamos ouvi-la sobre nada. Seu rosto deformado sob o peso das lembranças é o suficiente.
A Primeira Noite de Um Homem (1967). Fonte: The Guardian
Esses foram alguns exemplos externos de como os escritores e diretores (em específico, The Graduate, com a direção do mestre Mike Nichols) souberam usar dos recursos performáticos de seus atores e atrizes para elevar uma história que, caso fosse explicada demais, tiraria a tensão e suspense necessárias para transmitir o momento de vida da personagem, de incertezas e dúvidas, expressas em todas as dimensões do roteiro. Em Os Desajustados temos, porém, uma situação meta performática que parece ter aumentado a lente do microscópio de críticos e público sobre a obra que a brindaram com uma nova camada de profundidade.
O roteirista Arthur Miller escreveu o roteiro para sua esposa, Marilyn Monroe, em seu primeiro papel dramático. A personagem interpretada por ela, ainda, seria uma exploração do autor sobre a personalidade de seu cônjuge sex symbol e as filmagens marcaram o fim do casamento, assim como o último longa finalizado de Marilyn, que morreu aos 36 anos de overdose em agosto de 1962, e de Clark Gable, morto aos 59 por um ataque cardíaco em novembro de 1960 (Bradshaw, 2018).
A obra parece exalar em todos os seus aspectos, da cinematografia ao julgamento no cerne da história sobre a economia americana, um perfume de decadência. A narrativa é uma série de lutos, afetivos, econômicos, sociais e culturais, que reconhecem dolorosamente as imperfeições de um sistema de produção que resulta em pessoas cada vez mais distantes de suas próprias realidades sentimentais e ambientais.
O simbolismo potente sobre os contextos apresentados — a longa perseguição dos últimos cavalos selvagens, o rodeio e a cena aberta de Marylin gritando “assassinos” em um deserto inóspito — tenta exemplificar o mundo concreto ao mesmo tempo que permite as personagens de se afetarem por acontecimentos simples e brutais, aceitos pela maioria apenas em nome da apatia confortável que age como um anestésico sobre toda a história, especialmente os homens.
Fonte: Burning Retina
O filme pode ser lido como uma análise feroz da masculinidade dos anos 60, que se mantém, tristemente, atual no Brasil de 2024 e com o fenômeno político do bolsonarismo (Von Hunty, 2022). Temos nas três figuras masculinas: o ex-soldado, Guido, marcado por muitas perdas, mas também por um autrocentramento que parecem tornar seus problemas uma expressão quase que puramente egoísta de autopiedade; o cowboy velho, Gay, tomado por dores do passado e autoconsciente de sua ausência paternal, que parece nunca ter avaliado a sua posição em um mundo radicalmente diferente de sua juventude; e o jovem cowboy de rodeios, Perce, incerto sobre as suas convicções no novo mundo e buscando a liberdade incerta da vida dos solitários.
Os três vêem em Rosa, a personagem feminina central interpretada por Marilyn, uma maneira de se conectar com a subjetividade adormecida que os cerca. Ela, um elemento atípico àquela paisagem árida, não naturalizou as violências que parecem fazer parte do cotidiano local — com os animais, uns com os outros e consigo mesmos — e leva os que a cercam a processos que poderíamos chamar de “autoespanto” (Bogéa, 2019). Aquele em que saímos do lugar de participantes do Teatro Social como atores e vamos para a plateia, de maneira que estamos agora “contemplando, observando do exterior, de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam” (Arendt, 1992).
A paisagem sentimental das personagens tem seu simbolismo também fortemente expressado por meio também da geografia em que estão, Nevada, chamado pela amiga de Rosa no filme de “the leave it state”, o estado em que se deixam as coisas.
Fonte: The Guardian
“Ya got money you want to gamble? Leave it here. You got a wife you want to get ride of? Get rid of her here. Extra atom bomb you don’t need? Blow it up here. Nobody’s gonna mind in the slightest.” (Misfits, 1961)
Na época, e pelo desenho federalista da política americana, o divórcio feminino não era igual em todos os estados e Nevada havia se tornado um destino para as mulheres que queriam finalizar os processos de separação. Além disso, foi lá que foram feitos os testes da bomba atômica estadunidense, explodidas no deserto. É um lugar de descartes, árido e vazio que atrai pessoas e projetos que parecem se sentir deslocados em ambiente mais hospitaleiros. O clima e vegetação ecoam os sentimentos de vazio e possibilidades que as personagens sentem, são personificadas e ajudam a construir a história em sua geopoética (Oliveira, 2023).
A história é desenvolvida por Miller inteiramente em cima das dinâmicas entre as personagens, com pouca, senão nenhuma, estrutura narrativa forte (como a jornada do herói) guiando seu desenrolar.
Além do final esdruxulamente hollywodiano que se coloca no final (com mocinha e heróis dirigindo sob a luz das estrelas para um casamento com filhos padronizado), a obra demonstra a carreira literária e teatral do seu autor por meio do seu desinteresse em respostas roteirizadas. As perguntas feitas não são sempre respondidas, as personagens não justificam cada um de seus comportamentos em memórias explícitas ou explicadas de maneira satisfatória, os conflitos não dependem de vilões maléficos. Todos os homens parecem ter crenças ambíguas quanto a vida e ao significado de trabalho (com referência constantes ao temível “assalariado”) e não se mostram como parceiros perfeitos para ela ou qualquer outra mulher. Mais do que isso, Rosa não é uma visão unidimensional de sensualidade ou carinho como mutuamente excludentes. Uma das características centrais do filme, porém, é sua sexualidade.
Os homens a sua volta parecem vê-la como um instrumento sexual (Guido), estético (Gay) ou maternal/familiar (Perce), e é impossível não traçar paralelos entre a imagem de Rosa e a persona de Marilyn, criada pela verdadeira Norma Jean. Em uma cena, vemos, ainda, fotos de divulgação reais da atriz tampados pela personagem quando entra no quarto com Guido. De acordo com Rosa, aquilo era “uma brincadeira de Gay”.
Arthur Miller e Marilyn Monroe eram um casal improvável aos olhos da sociedade americana dos anos sessenta. Por que o ganhador de Pulitzer e autor de A Morte do Caixeiro Viajante estaria com a atriz hollywoodiana conhecida por seus papéis cômicos como “loira burra” e sem grandes protagonismos (que ela só teria a partir de 1950)?
Arthur Miller e Marylin Monroe. Fonte: Biography
Miller teve uma visão diferente, com um olhar menos centrado na persona de Marilyn Monroe e mais centrado na mulher que fazia esta personagem pública enquanto era cercada de um passado traumático.
“The sight of her was something like pain, and I knew that I must flee or walk into a doom beyond all knowing. With all her radiance she was surrounded by a darkness that perplexed me.” (Burke, 2024)
Casados em 1956 e oficialmente divorciados em 1961, o casamento passou por vários problemas de “incompatibilidade” (o que foi o nome dado à causa de seu divórcio nos tribunais), as pressões constantes da carreira de Marilyn na vida privada do casal e das expectativas de Miller sobre o papel de uma “boa esposa”, que incluia menos tempo em sets e mais em tarefas em casa. Apesar das divergências entre o casal, parecem ter sido anos felizes e tristes (como são as vidas humanas) que renderam muitas percepções a Miller sobre como era a atriz longe das câmeras. Uma mulher amorosa, inteligente, engraçada, vivaz, altamente sexualizada pela visão masculina enquanto carregava uma tremenda carência e incerteza sobre como conduzir relações afetivas saudáveis.
Gay: What makes you so sad? I think you’re the saddest girl I ever met.
Roslyn: You’re the first man that ever said that. I’m usually told how happy I am.
Gay: That’s because you make a man feel happy. (Misfits, 1961)
Poderíamos tecer ainda muitos comentários com os fios fornecidos por Miller em seus roteiro e das entrevistas da própria Marilyn sobre a dupla condição do sex symbol: o de desejo e da objetificação.
Em “Women as animals, women as objects: evidence for two forms of objetification”, Morris et al. (2018) mostram a diferença semântica na descrição de mulheres com “objetificação estética” e “objetificação sexual”. Enquanto as mulheres objetificadas esteticamente eram descritas com adjetivos não humanos (desumanização mecânica), as mulheres objetificadas sexualmente eram descritas com adjetivos animais (desumanização animalística). As mulheres objetificadas com foco na beleza e desumanizadas mecanicamente eram mais propensas a serem vistas como menos capazes de sentir dor.
A beleza pode ser, em pessoas lidas como mulheres, absolutamente perigoso.
Fotografa Eve Arnold e Marilyn Monroe. Fonte: AnOther
A morte de Marilyn Monroe foi um fenômeno estadunidense que, em retrospectiva, parece ter sido um dos presságios do desenrolar pessimista de uma década anunciada como a mudança radical de uma sociedade que, ao final, havia se transformado em alguns aspectos enquanto permanecia a mesma em outros. Com “o fim do sonho” e outras mortes públicas importantes, como de John F. Kennedy e Martin Luther King Jr., aquele seria um período histórico de muito progresso cultural, com os movimentos hippies e artísticos, e até com avanços políticos, como de direito civis para negros e negras, mas com muitos retrocessos políticos e conservadores, como a Guerra do Vietnã, além de uma manutenção massiva da estrutura do status quo que se lutava contra (Pollan, 2018).
Os Desajustados é a “canção do cisne musculosa”, Bradshaw (1968), que não encerra uma época. Não mostra o acidente de carro que estava por acontecer com seus protagonistas na realidade. Porém, assistindo em 2024, a visão de Monroe chorando cercada de homens bêbados pouco estáveis emocionalmente, que não conseguem vê-la para além de suas próprias expectativas românticas, é delicadamente doloroso.
Foto de Eve Arnold no set de Os Desajustados. Fonte: AnOther
O sentimento com que ele nos deixa lembra aquele do poema Meditations in an Emergency de Frank O’Hara, 1967:
Now I am quietly waiting for
the catastrophe of my personality
to seem beautiful again,
and interesting, and modern.
The country is grey and
brown and white in trees,
snows and skies of laughter
always diminishing, less funny
not just darker, not just grey.
It may be the coldest day of
the year, what does he think of
that? I mean, what do I? And if I do,
perhaps I am myself again.
Referências
Bradshaw, P. (2018, December 3). The Misfits review — muscular swansong for Marilyn Monroe and Clark Gable. The Guardian. https://www.theguardian.com/film/2015/jun/11/the-misfits-film-review-marilyn-monroe-clark-gable
BOGÉA, D. (2019). Introdução à filosofia. Trilhas Filosóficas, 12(1), 83–98. https://doi.org/10.25244/tf.v12i1.26
Burke, M. (2024, January 22). Arthur Miller on his divorce from Marilyn Monroe: “Everything was coming together in an explosion.” https://www.bbc.com/culture/article/20240119-arthur-miller-on-his-divorce-from-marilyn-monroe-everything-was-coming-together-in-an-explosion
Morris, K. L., Goldenberg, J., & Boyd, P. (2018). Women as animals, women as objects: evidence for two forms of objectification. Personality and Social Psychology Bulletin, 44(9), 1302–1314. https://doi.org/10.1177/0146167218765739
O’Hara, F. (1967). Meditations in an emergency. Grove Press.
Oliveira, G. C. (2023). Geopoetics: a visual language of peace in Wim Wenders’ films. Alternatives Global Local Political, 48(4), 268–282. https://doi.org/10.1177/03043754231196025
Pollan, M. (2018). How to change your mind: What the New Science of Psychedelics Teaches Us About Consciousness, Dying, Addiction, Depression, and Transcendence. Penguin.
Von Hunty, R. (2022, August 12). No que se apoia o discurso radical bolsonarista. CartaCapital. https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-miseria-a-economia-e-a-fe/The Guardian. (2020, March 26). The Misfits reviewed — archive, 1961. The Guardian. https://www.theguardian.com/film/2018/jul/10/misfits-film-arthur-miller-marilyn-monroe-clark-gable-review-1961