Comunidades Terapêuticas: Disputas Orçamentárias, Narrativas e Simbólicas

Por: Lara Larroyed – O trabalho de edição deste texto é difícil. Quando falamos de um tema sensível, em que as incongruências de narrativa não afetam apenas posições formais, mas também afetivas e políticas, estamos fadados a desagradar quase todos, por ser difícil falar sobre e discutir algo que muitas vezes ressoa no pessoal. Às vezes não colocamos em xeque as ideias que nos foram dadas porque elas moldam, por bem e mal (e, muitas vezes, em partes iguais), aquilo que nomeamos de verdade e aquele que nomeamos de nós, e estas, por sua vez, estruturam como vamos continuar no mundo. Construímos nossas vidas, com todo o esforço e dignidade, muitas vezes para seguir as regras que nos foram ensinadas como éticas. Não fazemos apenas por ser o mandado, mas por acreditar que é certo. Porém, em algum lugar no meio de um caminho extenuante, longo e difícil de mapear, podemos esquecer que também agimos às avessas: justificamos o que já é feito com carga moral para respaldar o normativo. 

Um artigo clássico da Antropologia, escrito por Horace Miner em 1956, chamado “Rituais do Corpo Entre os Nacirema” buscou explicar um pouco da falta de espanto silencioso que nos habita. No texto, é descrito um povo exótico que possui rituais corpóreos nos dentes muito específicos todos os dias e visitam o “homem da boca sagrada” algumas vezes por ano para “deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos” por meio de poções mágicas e cerimônias de limpeza. Ao final do artigo, passam-se alguns minutos antes de percebemos que ele descreve a ida de um norte-americano ao dentista. 

Por que este exemplo é relevante? Porque somos feitos de superstições e hábitos absolutamente irracionais, mais do que é bonito de admitir. Porque quando estamos falando do uso de substâncias psicoativas não baseamos nossas crenças apenas em dados e conclusões lógicas, mas também nas dúvidas sociais e morais que atribuímos a diferentes princípios que nos foram ensinados. E, porque, em português claro e sem andança ?? seria estranho se fosse diferente e dá muito trabalho mudar. 

Isso não é uma tentativa de desmerecer o método científico. Inclusive, aqui não colocamos nenhuma informação sobre  Comunidades Terapêuticas e seus efeitos políticos e espirituais na sociedade que não sejam amplamente apoiados por artigos publicados em revistas de grande circulação e revisada por pares, relatórios, conselhos e outras entidades oficiais (todas com referências ao final). Porém, é impossível não localizar o debate que vai ser feito sem reconhecer que a “droga” é um fato social. É descrita, feita e refeita por uma série de entidades e por uma série de interesses econômicos e regulatórios do pensamento coletivo. Apesar de ser algo real, uma série de substâncias químicas e catalogadas que afetam pessoas de carne e osso que conhecemos, amamos e, quem sabe, até já perdemos, a definição do que é real e como olhamos a realidade é influenciada por nossas definições prévias. E sob este olhar, há de se ter muito cuidado para não transformar o fato em consenso e o sentimento em imperativo. 

Antes de falar sobre a visão consensual do chamado “Movimento de Saúde Mental” sobre as Comunidades Terapêuticas, é preciso relembrar que não estamos falando do seu tio, do seu irmão ou mesmo de você. Estamos falando de uma base de dados construída por pesquisas maiores que buscaram investigar o que isso gera e como se dá para a maioria, e se esse não é você, tudo bem. 

Se alguma forma de tratamento alternativo não reiterado pelo Conselho Federal de Psicologia funcionou para você, tudo bem. O CFP e outros órgãos oficiais não buscam reger a sua vida e as suas escolhas, mas direcionar decisões públicas, para a população brasileira, de maneira comprovável para se dar parâmetro factual às decisões. 

Não há dúvidas de que as CTs geram benefícios pessoais para muitas pessoas, da mesma maneira que ainda não temos cura para a depressão. Assim, é possível que haja uma CT maravilhosa da mesma maneira que é possível que um banho de ervas te faça sentir menos melancólico. A pergunta é por que, e por quanto tempo e se deveria o SUS pagar por banheiras aromáticas comunitárias para apaziguar a endemia de depressão. 

Assim, iniciamos:

Parte 1: Definições de saúde mental e tratamentos na instituição médica 

Para falar em doenças mentais, temos, antes que falar do conceito de saúde, ou seja, aquilo que estamos tentando alcançar por meio das políticas públicas e programas de redirecionamento da saúde mental. O governo brasileiro a define em seu site oficial como segue: 

A saúde mental não se limita apenas ao que sentimos individualmente. Ela é uma rede de fatores relacionados. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Saúde Mental pode ser considerada um estado de bem-estar vivido pelo indivíduo, que possibilita o desenvolvimento de suas habilidades pessoais para responder aos desafios da vida e contribuir com a comunidade. (Ministério da Saúde, 2024)

Em outras palavras, partimos de um conceito de saúde que não é pautado pela mera ausência de doenças, mas um bem-estar individual e coletivo que permita o desenvolvimento biopsicossocial. 

A saúde, portanto, não pode ser definida apenas como a falta de transtornos porque deve considerar os contextos em que os sintomas são vividos pelo sujeito e que também contemplam as pessoas que vivem com condições crônicas, ou seja, que não possuem cura, mas tratamento. Uma pessoa com diabete pode ser saudável quando segue o tratamento corretamente e cuida da alimentação, da mesma maneira que uma pessoa “saudável” que come mal, dorme pouco e é insatisfeita no trabalho e não sente qualidade de vida. Por isso, mesmo aqueles que têm transtornos mentais, sejam eles quais forem, podem e têm o direito à saúde à medida que têm assistência médica, psicológica e estão em um contexto de segurança social. As doenças não são meramente biológicas, mas também contextuais.   

É a partir desta premissa que vamos pensar os caminhos para o cuidado e o tratamento destes transtornos sob alguns princípios-chave, também citados no site do governo federal sobre o tema:

  1. Desinstitucionalização;
  2. O cuidado em liberdade;
  3. Os direitos humanos.

Parte 2: O movimento antimanicomial e a legislação brasileira  

O movimento antimanicomial existe há muito tempo. Podemos argumentar, inclusive, que é tão antigo quanto os próprios manicômios. O conceito de loucura sempre foi histórico (muda conforme seu tempo), cultural (depende das interpretações sociais da sociedade em que é vista) e político (disputa e discute espaços de poder). Eu recomendo a leitura de História da Loucura de Michel Foucault. 

No Brasil, porém, o movimento organizado pelo fim dos manicômios modernos começou por volta dos anos 70 e teve seu marco com a Lei 10.216 de 2001, também conhecida como Lei Antimanicomial. 

(…) apenas em 2001, foi criada a Lei Antimanicomial (Lei 10.216, de 2001), que trata da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial à saúde mental. Com isso, ficou determinado o fechamento gradual de manicômios e que é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos psicossociais. Neste período, o Ministério da Saúde criou Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e reforçou o compromisso com a expansão de uma rede extra-hospitalar para esse tipo de atendimento, integrando ao Sistema Único de Saúde (SUS). Além do CAPS, foram adicionados às formas de cuidado os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTS), leitos de saúde mental em hospitais gerais e também a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). (Observatório da Reforma Psiquiátrica, 2024)

Para mais informações sobre as leis, decretos e portarias relacionadas à saúde mental, você pode clicar aqui e acessar a tabela da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde sobre o tema.

Para entender o que está sendo disputado com a nova legislação sob o relato de alguém que sofreu abusos por internações, citamos um trecho de entrevista feitos por nós do Observatório da Reforma Psiquiátrica   (reformapsiquiatrica.com), com Edu Real, ativista do Movimento Nacional de Vítimas de Comunidades Terapêuticas :

Hoje eu não acredito em internação voluntária, porque se uma pessoa pede pra ser internada ou aceita “voluntariamente”, é porque falta os serviços e equipamentos de Cuidado em Liberdade”, ou seja, somos coagidos a nos internar.

Ele, um verdadeiro glossário em carne sobre o movimento de saúde mental dos últimos 50 anos e profundo conhecedor da realidade destas instituições privadas vistas (tragicamente) por dentro, continua:

Existe um senso comum de que as comunidades terapêuticas não são manicômios e a grande sacada das comunidades foi instituir a internação voluntária e afirmam que quem está internado está ali porque voluntariamente quis e que ninguém está ali preso, mas a realidade é outra, a realidade não é essa. A gente não se interna voluntariamente. A gente se interna porque falta uma Rede de Atenção Psicossocial, por falta de cuidado em liberdade, a gente se interna por uma pressão social de que essa é a única solução, a gente se interna e depois que entra nada mais é “voluntário”. Existe também um lobby gigantesco das comunidades terapêuticas que cooptam a sociedade toda. Além disso, a gente se interna porque o pouquinho que tem da Rede de Atenção Psicossocial está totalmente sucateado, desmontadas. São poucas que funcionam com plenitude. Então, a gente é cliente em potencial das comunidades e os caras não querem largar o osso. A lógica das comunidades é a manicomial e nós queremos o fim dessa lógica.

O que chamamos de lógica manicomial? É um termo usado para representar, na maioria das vezes, um conjunto de premissas que norteiam os cuidados de saúde mental antigos e ainda operam hoje, mesmo em lugares que não são formalmente manicômios, mas tem práticas análogas (hospitais psiquiátricos, CTs). 

Algumas destas premissas são:

  1. O cuidado de pessoas em situação de doença mental e dependência química aguda deve ser feito em locais separados da sociedade comum (social e fisicamente);
  2. As doenças mentais têm bases espirituais que podem ser tratadas por meio de regimes disciplinares controlados;
  3. A dependência química é essencialmente comportamental;

Nenhuma delas é explicitamente violenta, porém os profissionais de saúde mental levantam as orelhas para todas, pelos seguintes motivos:

  1. O cuidado de pessoas em situação de doença mental e dependência química aguda deve ser feito em locais comunitários sob a Rede de Atenção Psicossocial e devem prezar pelo integração social, uma vez que os indivíduos quando são removidos do contexto em que vivem para o tratamento, irão, geralmente, ter recaídas quando forem inseridas de novo na sociedade e devem, junto aos seus familiares e amigos, aprenderem a manejar a condição com mudanças ambientais, sociais e afetivas;
  2. As doenças mentais podem ter base espiritual para pessoas religiosas, mas também tem bases biológicas, sociais, históricas, políticas e culturais que devem ser levadas em consideração na hora de diagnóstico e tratamento;
  3. A dependência química é igualmente sistêmica na vida do indivíduo e deve ser combatida em ações coletivas, assim como a saúde mental, e não individualizadas (às vezes devem ser individualizadas?

E, claro, tudo garantido pelo SUS. 

Parte 3: Novas fronteiras de pensar a saúde mental

Em sua obra, Drugs, Set and Setting, Zinberg (1984) argumenta que há formas distintas de uso de drogas, que variam em função do tipo de substância consumida e do modo de sua ingestão (drug); da subjetividade do usuário (o set); e do contexto social de uso (o setting). Isso explicaria, por exemplo, por que alguns indivíduos estabelecem relações de dependência com certas substâncias e não com outras; ou mesmo por que alguns usuários nunca se tornam dependentes. (Santos, 2018)

Depois de todas as informações apresentadas no texto e do pequeno trecho descrito acima sobre as novas maneiras de se pensar diagnósticos como a drogadição, vamos encerrar falando da mudança de paradigma que o cuidado em liberdade nos pede e as CTs travam: a doença não é uma falha, mas uma condição intra e interpessoal. 

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) fez um Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras em março de 2017 que descreve, mesmo em comunidades fiscalizadas, uma lógica de tratamento baseada em três pilares: trabalho, disciplina e espiritualidade. Os pacientes fariam laborterapia para reformar a própria vida e desenvolver melhor a disciplina para conseguir controlar suas tendências, voltadas ao vício, além de se conectarem com a própria fé. Porém, com os pontos que mencionamos acima, vemos que esta lógica ainda opera sob uma visão moral e religiosa sobre os transtornos mentais. 

Aqui se desconsidera: a desordem vivida pela maioria no contexto social que muitas vezes torna a drogadição uma escolha eficiente (ex: usar substâncias baratas para amenizar sensações de fome, frio, solidão), o bem-estar espiritual como um conceito amplo que abarca muitas outras áreas que não a religiosa (como o prazer corporal e a sensação de conexão com a natureza e a sexualidade) e a percepção estrutural de que vivemos em tempos excessivamente permissivos e pouco regrados. 

Porém, somos regrados o tempo todo. Nos regramos, internamente, a todo momento e aceleramos nossa constante autovigilância no sistema de produção digital. ?????

Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chu Han descreve a ausência de chefes e ambientes de trabalho físicos, com a progressiva precarização dos vínculos trabalhistas e incentivo das redes sociais pelo empreendedorismo de si por ???? meio da imagem, gera novas formas de vigilância: a própria. Sempre poderíamos estar fazendo mais, trabalhando mais, lendo mais, malhando mais, descansando mais. Nos faltam tantas ausências que nos sentimos sobrecarregados por pensar. Existimos sem pausa. E, muitas vezes, usamos as substâncias nocivas, como o álcool, o cigarro, o açúcar, como maneiras de suportar uma aceleração da existência que não é em nada confortável. (Em uma série de textos do Observatório da Reforma Psiquiátrica, ABC do Vício, tratamos sobre a dependência um pouco mais profundamente.

Tratar em liberdade é questionar tudo que sabemos, é ser antimanicomial e é ser mais aberto à empatia que podemos sentir pelos outros. Tratar a alteridade como um exercício prático e saber que somos todos diferentes e por isso muito iguais: não somos melhores porque não estamos presos. Não temos mais disciplina ou menos gosto pelas coisas erradas. Tivemos sorte, ajuda e um bocado de mãos invisíveis que fizeram nosso sucesso possível. Há de se fazer aos outros também. (a mesma coisa)

Para saber mais sobre como o governo tem sistematicamente desinvestido na RAPS e desviado recursos públicos para as comunidades terapêuticas, você pode assistir aqui a palestra “Novos-velhos manicômios (e mais) as Comunidades Terapêuticas” do professor Pedro Henrique Antunes da Costa ou acessar os links do projeto de extensão da Universidade de Brasília, Saúde Mental e Militância. 

Obs. Esse parágrafo final está ótimo, pode incluir no texto só fiz pequenas alterações

Fonte: Palestra Novos-Velhos Manicômios

Referências

Brasil de Fato. (2023, November 13). Estado brasileiro é o único da América Latina que financia comunidades terapêuticas, diz psicólogo. https://www.brasildefato.com.br/2023/11/13/estado-brasileiro-e-o-unico-da-america-latina-que-financia-comunidades-terapeuticas-diz-psicologo#:~:text=As%20comunidades%20terap%C3%AAuticas%20fazem%20parte,cen%C3%A1rio%20com%20o%20governo%20Lula.

Conselho Federal de Psicologia. (2022, August 2). CFP reforça posicionamento contrário ao financiamento de comunidades terapêuticas com recursos públicos. https://site.cfp.org.br/cfp-reforca-posicionamento-contrario-ao-financiamento-de-comunidades-terapeuticas-com-recursos-publicos/

Damas, F. B. (2013). Comunidades Terapêuticas no Brasil: Expansão, Institucionalização e Relevância Social. Revista De Saúde Pública De Santa Catarina, 6(1), 50–65. http://esp.saude.sc.gov.br/sistemas/revista/index.php/inicio/article/download/173/201

Lara Larroyed é Psicóloga e Designer Gráfica

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Celio Calmon

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