Entrevista com Camarada Edu Real, membro do Movimento Nacional de Vítimas de Comunidades Terapêuticas

Meu nome é Eduardo Real, moro na periferia de Osasco, tenho 37 anos, sou estudante de Gestão Pública e estagiário na área neste momento atuando junto a Administração Penitenciária de SP, num departamento que trata da reintegração social de populações específicas privadas de liberdade: Lgbtqiapn+, mulheres, pessoas em sofrimento mental, imigrantes, entre outros. Sou usuário da Rede de Atenção Psicossocial do município onde moro e atualmente quase não frequento, porque tive uma melhora significativa través do CAPS e aí o espaçamento das consultas e atendimentos é maior, além disso sou militante e ativista da luta antimanicomial, faço parte do Movimento Nacional de Vítimas de Comunidades Terapêuticas e da Frente Nacional pelo Fim das Comunidades Terapêuticas. Nosso movimento se formou quando pessoas que foram vítimas desses manicômios se juntaram. Estamos nos organizando em âmbito nacional, porque tem vítimas das comunidades terapêuticas de vários estados e diariamente recebemos denúncias ou vemos caos pelos jornais. Então é um movimento crescente e a gente está assegurando que ele cresça com qualidade.

Qual sua atuação no Movimento Antimanicomial em Osasco?

Sempre estou em cima aqui no município nos âmbitos institucionais cobrando a expansão e melhoria das pouquíssimas políticas de saúde mental aqui, sucateadas, junto aos trabalhadores dos Caps, pessoas usuárias e outros militantes. Além disso aqui em Osasco fiquei conhecido como o cara que superou o crack, então a comunidade me procura, pois me conhece como “ex-nóia” e vem familiares de usuários bater na minha porta pedir aconselhamento, pra trocar umas ideias. Quando sou procurado, atuo com o RD, redução de danos, e atuo também aproximando pessoas à escassa Rede que tem aqui. Mas é muito difícil, porque por exemplo, a gente tem um só CAPS AD em Osasco e ele ainda perdeu o seu lugar e funciona hoje em puxadinho de um hospital, num lugar onde ficava o necrotério, não dá pra atender a galera toda. Aqui na cidade, também dou orientação a dois mandatos legislativos na questão de saúde mental e sempre estamos dialogando. Também já atuei no Conselho Municipal de Saúde, mas depois das denúncias que eu já trouxe, uma delas saiu inclusive na Globo, sobre o desvio de 200 milhões de desvio aqui em Osasco, deram um jeito de me expulsar do Conselho. Eu era Conselheiro Municipal, e olhe que legal, me expulsaram dia 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial.

Conte como começou sua procura de ajuda para tratar a   adicção?

Como todo adolescente, eu fazia uso nas festas com os amigos de álcool, de maconha, cocaína, de forma recreativa, no embalo, às vezes. Nosso cotidiano na periferia tem essas coisas, a juventude consome e eu como qualquer outra pessoa consumia também. Mas lá pra 2011, estava me sentindo incomodado, principalmente com o uso de cocaína e eu pedi ajuda pra minha família. Minha família, muito prestativa, mas ignorante à respeito, buscou ajuda na rede pública, na época o CAPS Álcool e Drogas era um serviço que estava começando e infelizmente ele funcionava mais como um balcão para comunidade terapêutica do que como CAPS. Então, alguém indicou uma comunidade terapêutica pra minha família e vivenciei minha primeira internação, de forma involuntária, mesmo estando estável e não sendo o indicado. Lembro que num dia estava voltando de um passeio e quando cheguei em casa fui rendido e levado para um pronto-socorro público, onde me aplicaram Haldol e me deram medicações, contra minha vontade, sem recomendação médica, num combinado entre quem aplicou com o pastor. Aí eu acordei numa comunidade terapêutica, em Cotia, onde eu passei 7 meses. A CT era de um pastor da região que tinha muitas comunidades terapêuticas, quais inclusive, algumas foram fechadas pelo Ministério Público, apesar que ele ainda tem algumas, porque é muito comum, depois de fechadas eles abrem novamente com outro CNPJ ou com o nome de um laranja.

Bom, foram 7 meses dentro dessa CT, em um galpão com outros 80 rapazes, conhecido como “quarto 7”. O espaço, eu lembro muito bem, era um galpão que tinha uma porta fechada, tipo uma cela, onde a gente revezava para poder respirar um ar melhor e tinha uma janela toda fechada com uma chapa de ferro toda furada de pregos. Era um ambiente de muita violência. Primeiro por conta desse espaço e segundo pelos castigos que a gente sofria. Terceiro por conta do cotidiano que era culto religioso de manhã à tarde e à noite, ministrados por internos evangélicos. A narrativa dos cultos era muito culpabilizadora, homofóbica, enfim era muito violento o discurso. Vivenciei cenas horríveis nessa comunidade. Pessoas apanhando, vi pessoas tendo membros do corpo quebrados, dentes, castigos, dados por outros pacientes que eram colocados como “monitores”. Além disso vi outros castigos, como ficar privado de comer a comida que por sinal era estragada e horrível, ou ficar trancado na salinha de oração, entre outras coisas, fora a humilhação de estar ali. Era um ambiente extremamente violento.

Quando eu entrei lá, eu só podia falar com a minha família um mês depois. A gente falava com a família pelo telefone e a ligação era monitorada. Ficava uns caras ao nosso lado durante a ligação monitorando. Eles falavam se eu ficasse chorando, iria ter que aguentar as consequências e mais meses de internação, então, a gente não falava o que estava acontecendo. Muitas dessas violências eu não sabia que eram violências, não tinha conhecimento na época, até porque as violências e violações contra pessoas usuárias são tão normais, que a gente acha que era aquilo mesmo. A única coisa que eu sentia era que havia “algo muito errado”. Eu não tinha a consciência que tenho hoje. Nas ligações, antes de passarem pra gente, falavam com as famílias e elas sofriam uma espécie de estelionato. Eles falavam “Olha, o seu filho vai dizer que que apanhou, que sofreu violência, mas não é verdade.” Eles diziam que nossos possíveis relatos era abstinência, que a gente estava mal e que precisaríamos ficar mais alguns meses. A família quando pegava o telefone para falar com a pessoa já estava blindada. Importante falar também que muitas famílias achavam, e ainda acham, que era certo punir, que era bom que seu filho tomasse uma coça, uma surra, porque a galera acha que isso (usar substâncias) é um desvio moral. Muitas famílias queriam que o filho apanhasse mesmo, mas na ignorância.

Você ficou 7 meses nessa comunidade. E depois, o que aconteceu?

É engraçado, na comunidade terapêutica você chega tem aquele susto e depois vem a adequação, naquele ambiente você começa a pegar o jeito pra não apanhar, aí você se aliena, entra no clima, naquele clima sintético. Comigo, nos primeiros meses foi um grande susto, seguido de adaptação ao medo e quando tinha visita ficava com este medo conspirando na minha cabeça, pensando como ia sair dali, então não conseguia falar. Mas é assim, depois do susto quando a gente chega, vem alienação, você começa a criar vínculos com alguns pacientes, se adapta ao ambiente violento e se sente confortável, até porque a família já não estava mais cobrando, enchendo o saco, aí a gente começa a dizer que está tudo bem. Já quando chega o período que dizem ser a fase final, agonia, você não aguentava mais, e no meu caso numa das últimas visitas, comecei a chorar pedindo pra me levar embora dali. Lembro disso com muita nitidez, pois naquele dia, o único trabalhador lá, que era uma espécie de capanga, que dava surra nas pessoas, me viu chorando na visita aos meus pais e me pegou no meu braço e me levou no quarto. Ele me deu um tapa na minha cara, dizendo que eu ia ficar mais meses, mas ele não tinha percebido que meu pai estava olhando pela janela. Foi aí que meu pai viu o que estava acontecendo na real e falou: “vou levar você embora”.

Eu saí muito destruído de lá. Entrei com um problema com cocaína, qual eles prometeram a minha família que iam me curar, inclusive que eles iam me curar de ser homossexual. Sim, esse era o diálogo que eles tinham com a minha família, que Jesus ia transformar a minha vida, que eu ia me converter, largar as drogas e virar hétero. Bom, como saí de lá muito destruído, adoecido mentalmente e desassistido, logicamente voltei a usar cocaína. Quem que aguenta uma situação dessa e fica sem voltar ao uso? Só que eu não podia usar em casa, para minha família não ver, se não eles me internavam de novo, então eu comecei a usar cocaína na rua, muito deprimido, muito mal e foi quando que conheci as malocas do crack, a galera do crack e comecei a usar o crack.

Depois você teria sido tratado no CAPS Como foi no CAPS?

Depois do crack, passei por muitas outras internações, “voluntárias” porque o craque me debilitava muito e a minha família queria porque queria de qualquer jeito que eu parasse de usar a droga, então eu cedia. Hoje eu não acredito em internação voluntária, porque se uma pessoa pede pra ser internada ou aceita “voluntariamente”, é porque falta os serviços e equipamentos de Cuidado em Liberdade”, ou seja, somos coagidos a nos internar. Daí então foram 14 internações, numa voluntariedade sobre pressão, sobre chantagem, que hoje sei ser devido à falta de equipamentos públicos, de CAPS e outros equipamentos. Mas mesmo sendo “voluntárias”, sofri todo tipo de horror em algumas comunidades, qual, em algumas, passei ou vi coisas até piores do que da primeira experiência. Aquilo tinha virado um ciclo, eu fazia uso problemático do crack, cedia quando estava muito debilitado, pedia ou cedia para ser internado, depois de um tempo, saía e voltava para o crack, num ciclo num total de 14 internações.

Em 2015, foi o ano em que deu uma virada na chave. Eu estava saindo de uma internação e vi uma chamada na internet do Instituto de Psiquiatria da USP de um tratamento experimental da terapia do transtorno do Impulso, focado em skin picking, que é mania de tirar casquinha do rosto, puxar os pelos.  Mandei um e-mail e me chamaram para fazer uma terapia ocupacional de alguns meses, com psicóloga, psiquiatra, assistente social e médica e o foco era a Terapia Ocupacional e tinha uma terapeuta lá, Ana Laura, que hoje é chefe do Instituto psiquiatria da USP, uma pessoa que amo de paixão até hoje e agradeço imensamente o que ela fez por mim. Ela que me mostrou que dava para fazer tratamento em liberdade e apesar de eu ter ido para tratar o skin picking, acabei ficando longo período sem usar nada de crack, sem pressão nenhuma. Aquilo para mim e para minha família foi muito importante porque a gente passou a ter um outro tipo de entendimento.

A partir daí me foi indicado o tratamento no CAPS e depois de um tempo ingressei. Aquela foi minha primeira experiência de cuidado em liberdade. Eu ia lá duas vezes por semana e passava o dia inteiro. Se eu quisesse ir embora, eu iria, mas eu ficava, não faltava nenhuma sessão. A partir dali, as internações em comunidades terapêuticas pararam. As minhas recaídas foram por um prazo maior, mais longo. Eu passava um ano, dois anos sem usar e quando eu caia, era por um tempo menor e a minha família não me internava mais às cegas nas comunidades terapêuticas. Eles depois disso, nos momentos que eu tinha recaída, começaram a investigar antes de internar e não por períodos prolongados, eu ficava só um mês, apesar que nem isso indico, mas pela falta de RAPS no meu município, ainda passei por outras. Mas o importante é que o cuidado em liberdade mudou muito as coisas para mim.

O meu pai antes desse 2015 tinha problemas com álcool também e ficava violento. Vi muito na minha infância ele com esse comportamento violento e isso era um dos meus traumas, mas quando consegui a terapia lá no Instituto de Psiquiatria da USP ele me acompanhava e ele também, de forma indireta foi beneficiado. Quando eu sai de uma internação, estava muito mal porque lá na CT eles falavam que o mundo era horrível, que você é fraco, que não tem condição de viver no mundo e que o único lugar seguro era a CT. Na verdade, eles dizem isso em todas. A ideia da comunidade terapêutica é essa: você não tem capacidade de viver as coisas da vida, você é um dependente químico, você é um adicto, você é um fraco. Se você não aceitar Jesus vai dar tudo errado. É aqui o lugar que você tem que passar a maior parte do seu tempo, da sua vida, então eu saia com muito medo de dentro desses locais e quando fui para essa terapia do Instituto de Psiquiatria, falei “pai vai comigo, porque se eu pegar dinheiro, eu vou usar e eu não vou conseguir chegar lá”. Eu estava apavorado, mas queria fazer a terapia, até porque na época estava muito deprimido e consequentemente me machucava muito e então ele passou a me acompanhar. Meu pai enquanto eu tinha a terapia, sempre ficava nos corredores. Durante os 6 meses do meu tratamento, ficava me esperando nos corredores e interagindo. Durante esse tratamento que fiz e depois, no final de seis meses, pra surpresa de todos lá em casa, ele se tornou abstêmio, parou de beber. Aí ele virou um cara totalmente diferente de quando eu era pequeno, virou um amigo, um camarada. Tomou um posicionamento político ideológico e hoje estamos muito alinhados. Ele está sempre nos atos junto comigo e virou meu amigão e agora um grande parceiro da minha mãe, que sofreu muito durante aquele período que ele abusava do álcool. 

Como você vê essa questão do ministério do Desenvolvimento Social reservar uma quantia grande de recursos para as comunidades terapêuticas e o ministério da Saúde não reagiu, ficou em segundo plano? 

Em 2015, quando eu comecei a fazer o tratamento em liberdade, foi quando conheci os movimentos da luta antimanicomial. Bom, a gente se torna antimanicomial a partir do momento que é internado em um manicômio, mas a minha atuação coletiva só começou nessa época, junto a vários movimentos. É bom lembrar que foi no governo Dilma que começou a parceria público-privada com as comunidades terapêuticas, que foi assinado um grande contrato com elas e que se reforçou a legislação que as dava legitimidade, em resumo época que começo meu inferno em CT. De lá para cá, essas parcerias do governo com as comunidades terapêuticas têm sido ampliadas, assim como os contratos nos Estados e Municípios. Tem a questão das clandestinas também. E a gente sabe, que muitas vezes os recursos que alimentam as comunidades terapêuticas, não só para aquelas regularizadas, o que já é um absurdo também, acaba alimentando uma rede clandestina e essa rede alimenta uma outra rede, de tráfico, de corpos, de sequestros, de institucionalização da juventude periférica e por aí vai. É um segundo sistema penitenciário brasileiro.

Aí veio o governo Bolsonaro. Depois do golpe de 2016, os governos alimentaram e fortaleceram ainda mais os laços com essas instituições manicomiais. Ao mesmo tempo, houve também muita resistência dos movimentos antimanicomiais e setores da saúde. Aí quando chegou a vitória do Lula, de um governo democrático, a gente falou, “nossa, que legal! a gente vai conseguir reverter isso e superar”, mas não foi o que aconteceu. Para nossa surpresa, logo no primeiro mês do governo Lula, em janeiro, o ministério de Desenvolvimento Social, cujo ministro Wellington Dias, que inclusive tem fortes conexões com as comunidades terapêuticas e federações de CT no Nordeste, que são um tipo de sindicato patronal das comunidades, criou um Departamento de Apoio às Comunidades terapêuticas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento. São vários absurdos, um deles é estar fora da pasta da Saúde. Outro é ser um departamento que apoia os contratos já existentes, mas acaba que criando mais contratos ainda. Agora em dezembro de 2023 por exemplo, foram centenas de contratos feitos pelo ministério do Desenvolvimento Social com mais de 500 comunidades terapêuticas, sendo 90% delas comunidades evangélicas, a grande maioria com histórico de violências e de violações de direitos. Muitas dessas comunidades terapêuticas foram, inclusive, citadas no relatório de inspeção feito pelo Conselho Federal de Psicologia, em 2018.

Mas a nossa maior decepção foi o Plano Plurianual, que o Governo Federal apresentou ao Congresso Nacional em outubro de 2023. O Plano Plurianual é o orçamento com os gastos do governo de 2024 até 2027 e neste plano foi destinada a maior verba já concedida às comunidades terapêuticas, a manicômios, da história. Fora isso o Plano prevê a maior institucionalização da saúde mental nas comunidades terapêuticas até hoje visto. O governo Lula está destinando bilhões a mais do que nos governos Bolsonaro e Dilma. Junto com o PPA, tem portarias que flexibilizaram as regras de funcionamento para as comunidades terapêuticas. Por exemplo, tem uma portaria do ministério do Desenvolvimento Social, que flexibiliza ainda mais a fiscalização das comunidades terapêuticas. Ou seja, já não existe fiscalização, agora quem vai fiscalizar as comunidades terapêuticas são empresas terceirizadas e eles, os proprietários, podem montar as empresas terceirizadas deles mesmos e fiscalizarem suas próprias as comunidades, ou o próprio proprietário da comunidade terapêutica fiscaliza. Em resumo, ele pode enviar umas fotos, umas filmagens da sua comunidade terapêutica e o mais bizarro da portaria, a fiscalização pode ser online feita pelo próprio dono, que estará tudo bem.

Quando se cria uma comunidade terapêutica não tem que haver um regulamento prevendo que a comunidade tenha psicólogo, psiquiatra e enfermeiros?

Existem as normas federais, estaduais e municipais, mas não temos controle nenhum. Nos municípios é uma avacalhação, não tem controle nenhum do Controle Social ou instituições. Vou dar um exemplo, recentemente foi fechada uma comunidade terapêutica em Embu-Guaçu, no interior de São Paulo e tinha várias pessoas internadas vindas de outros estados e qual o cuidado destes Estados com quem estava internado ali? Nenhum. Existem algumas normativas que “regulam”, mas que não fazem diferença nenhuma. Por exemplo, as comunidades têm que ter um psiquiatra, mas funciona assim: vai um psiquiatra a cada 15 dias, assina a ficha de todo mundo, recebe o dele e tchau. As entidades de psiquiatria e psicologia estão pouco se lixando, porque eles estão ganhando e o resto que se dane. Essa é a realidade das Comunidades Terapêuticas no Brasil. Ainda tem a questão das comunidades clandestinas. Você imagina, se nem as comunidades autorizadas e regulamentadas não seguem o padrão de atendimento que deveriam, imagine essas clandestinas. 

As comunidades terapêuticas estão sob o controle do ministério de Desenvolvimento Social e não do ministério da Saúde, já que elas envolvem saúde mental. Como se explica isso?

Elas não estão no Ministério da Saúde porque têm recomendações de várias entidades, do Conselho Nacional de Saúde e entidades de classe, com a Abrasme, a Abrasco, com estudos técnicos impedindo que estejam e recomendando que esse modelo não deve nem existir. Em resumo, existe todo um estudo técnico que mostra que as comunidades não deveriam estar no Ministério da Saúde e em lugar nenhum. As entidades da saúde cobram a não existência desse tipo de equipamento. Ai então, o que eles fizeram foi levar para a pasta da Assistência Social, como entidades filantrópicas de “acolhimento”. Por exemplo, você pega o CNPJ de uma comunidade terapêutica, todas têm no CNPJ o “acolhimento”. É essa bagunça toda.  Além disso, temos um legislativo no Brasil que não se debruça sobre essa questão, com exceção de poucos, e eu acho isso uma vergonha. Veja, não estamos tratando de algum assunto pontual, mas sim de uma parcela da população brasileira que está sendo aprisionada, encarcerada e tem seu estado de direito violado diariamente.

De um tempo pra cá, a gente construiu com muita luta, e embaixo de muita paulada, a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental. Infelizmente, ela aconteceu depois da entrega do Plano Plurianual do Governo Federal, então as Diretrizes da 5ª Conferência não entraram no PPA, ficaram como uma caixinha de sugestão e o certo era o PPA ter sido criado ou construído a partir das Diretrizes e Propostas que surgiram na também na 5ª Conferência e não aconteceu assim. Durante Conferência também foi lançada uma Frente Parlamentar da Luta Antimanicomial, composta pela deputada federal Érica Kokay e pelo pastor Henrique. Tenho muita preocupação em relação a essa frente. Venho acompanhando esses parlamentares que são do nosso campo, mas acho que eles simplesmente não dão a devida importância a questão. Vejo tanto a Frente Parlamentar da Luta Antimanicomial, como a Frente Parlamentar de Saúde Mental atuando no mesmo sentido, esta última inclusive encabeçada pela deputada federal Tábata Amaral, e ambas, não vem tratando sobre a questão das comunidades terapêuticas e isso é grave. Na 5ª Conferência também, nós ativistas e movimentos, fizemos um ato histórico durante a Conferência. A gente foi até considerado “dissidentes”, por isso, porque em vez da gente ficarmos no ato imposto pelo Conselho Nacional de Saúde, nós descemos, umas 200 pessoas, para o prédio do ministério do Desenvolvimento Social afim de ocupar. No decorrer do ato, conseguimos que o assessor do ministro Wellington Dias, recebesse a gente, então ocupamos o auditório, fizemos nossas falas e nos foi proposto a abertura de um diálogo permanente com o governo federal. Neste momento estamos nos reunindo com nossa base de usuários e vamos em breve trazer uma proposta para o governo. Em breve a gente vai chegar em Brasília com a proposta feita pela recém criada Frente Nacional pelo Fim das Comunidades Terapêuticas, que vai ser composta pela maioria dos movimentos da luta antimanicomial, como O MNLA, Movimento Nacional de Luta Antimanicomial e do próprio movimento que agora está nascendo, o Movimento Nacional de Vítimas das Comunidades Terapêuticas, coletivos de mulheres antimanicomiais, entre outros e propor um Plano Nacional de Transição Antimanicomial, visando o fim das comunidades terapêuticas. A gente poderia fazer uma porção de diálogos, mas a ideia é criar um plano nacional que envolva toda sociedade numa construção desse plano de transição.

O CNJ determinou que todos os manicômios judiciários sejam fechados até maio desse ano. Vocês lutam por uma decisão judicial que também estabeleça o fechamento das comunidades terapêuticas?

Quem dera o CNJ decidisse ou tratasse da questão não só dos manicômios judiciários, mas também do fim das Comunidades Terapêuticas. Existe um senso comum de que as comunidades terapêuticas não são manicômios e a grande sacada das comunidades foi instituir a internação voluntária e afirmam que quem está internado está ali porque voluntariamente quiseram e que ninguém está ali preso, mas a realidade é outra, a realidade não é essa. A gente não se interna voluntariamente. A gente se interna porque falta uma Rede de Atenção Psicossocial, por falta de cuidado em liberdade, a gente se interna por uma pressão social de que essa é a única solução, a gente se interna e depois que entra nada mais é “voluntário”. Existe também um lobby gigantesco das comunidades terapêuticas que cooptam a sociedade como um todo. Além disso, a gente se interna porque o pouquinho que tem da Rede de Atenção Psicossocial está totalmente sucateado, desmontadas. São poucas que funcionam com plenitude. Então, a gente é cliente em potencial das comunidades e os caras não querem largar o osso. A lógica das comunidades é a manicomial e nós queremos o fim dessa lógica.

Vamos falar da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que apesar de ter tido pouco efeito prático, reuniu muitos grupos antimanicomiais que lançaram propostas. Fiquei surpreso de a mídia não ter dado cobertura alguma ao evento…

O Lula não compareceu em nenhum momento à Conferência, apesar de ele ter participado de inúmeras outras conferências que aconteciam ali ao lado. Só havia uma ministra presente e em comparação, na última conferência foram sete ministros. Foi uma desorganização terrível, foi uma violência com as pessoas usuárias, na verdade, foi uma conferência violenta com todo mundo, mas principalmente com as pessoas usuárias, com as mulheres com as crianças, com os autistas. A gente foi colocado muito distantes uns dos outros, justamente pra não nos organizarmos. Sobre os diversos adiamentos, a desculpa foi que a conferência não foi realizada antes porque não tinha espaço e isso é um absurdo, pois o Brasil tem tamanho de um continente. Por que tem conferência que foi lá no Amazonas e a nossa só podia ser em Brasília? O que me traz a conclusão de que essa conferência aconteceu de um jeito que não era para acontecer, para desarticular os movimentos ativistas que estavam lá e o erro histórico do Governo não ser exposto, sabendo que conferência não é só para apresentar propostas e diretrizes. Isso também foi muito problemático. Eu entendo que ela foi feita para não ter a notoriedade que deveria ter. A prioridade do governo hoje não está sendo o atendimento à saúde mental. Eu vou dar uma prova disso. Em janeiro de 2023, o governo Lula lança o Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas extremamente equipado, com diálogos constantes com as federações e um orçamento bilionário no PPA. Mas, somente 7 meses depois, ele cria o Departamento de Saúde Mental no ministério da Saúde, coordenado por Sonia Barros, que é uma figura extremamente profissional, competente.

Esse departamento, que agora também é Álcool e Drogas infelizmente já nasce sucateado. Inclusive eu coloco isso aqui como uma discriminação institucional porque a Sônia Barros, uma acadêmica, mulher negra, dirige um departamento que deveria ter notoriedade e todo apoio, mas não, este foi reduzido a um espaço pequeno e com pouca atuação, que pouco surte efeitos para toda população atendida, qual, maioria se trata de uma da população negra e periférica. Além disso, veja a comparação, para o Departamento de Comunidades Terapêuticas, um departamento de homens brancos, muito orçamento, para o Departamento de Saúde Mental, liderado por uma mulher negra, sucateamento e silenciamento. Isso se chama racismo institucional.

E mais, apesar da pasta da Saúde não tem a significância que deveria ter, tem sido disputada pelo Centrão atrás de verbas. 

Olha me doí muito fazer essa crítica, nós ajudamos a eleger esse governo e não queremos derrubar ele, mas ao mesmo tempo, é inadmissível essa aliança e promoção do fascismo em sua forma manicomial

O governo tem anunciado um aumento de gastos na Rede de Atenção Psicossocial. Você acha esse aumento significativo?

Tem um orçamento que foi anunciado pela ministra da Saúde Nísia Trindade, de 200 milhões de reais para construção de CAPS, num edital direcionado para os municípios. Vamos lá. Existe um déficit enorme de CAPS em todos os municípios e esse recurso é insuficiente. Além disso, a administração dos recursos deveria ser tripartite, mas não funciona assim. O estado de São Paulo, por exemplo, não dispõe para os municípios nenhum 1 centavo para os Caps. Então, os municípios se cadastraram pra receber sua parte da verba de 200 milhões e ficam dependentes de seus orçamentos e dos orçamentos do Governo Federal. Mas repito a pergunta: o que são 200 milhões para o nosso déficit de CAPS? 200 milhões não é nada. Nós queremos é um orçamento digno, uma política pública para a saúde mental que atenda plenamente as necessidades no atendimento à saúde mental em liberdade. Aqui em Osasco por exemplo nós temos um CAPS Álcool e Drogas para 800.000 pessoas. Aqui o CAPS não tem local de funcionamento adequado e ainda existe porque tem uma equipe que se dedica ao trabalho com pessoas que fazem uso problemático de álcool e drogas embaixo de muita precariedade para atender. Aqui a cidade deveria ter 12 Caps Álcool e Drogas para o número de habitantes.

Vamos falar sobre o Movimento Nacional de vítimas de Comunidades terapêuticas. Quais são as propostas do movimento?

Esse movimento nasceu a partir de uma série de denúncias que têm vindo à tona: violências e violações, assassinatos dentro das comunidades terapêuticas. Teve um episódio marcante que foi o fechamento da Clínica Kairós na cidade de Embu-Guaçu, em SP, onde assassinaram Onésio Ribeiro. Ele que tinha seus problemas, foi internado nesta comunidade e foi brutalmente assassinado, depois de uma longa sessão de espancamento no final do ano passado. Em seguida, teve um novo espancamento de um outro rapaz nessa mesma comunidade e o vídeo vazou e todo mundo viu o rapaz sendo retirado de uma ambulância fake, com motorista fake, funcionários também fakes, na verdade, pacientes fazendo o trabalho de técnicos de saúde, mas espancando o rapaz violentamente, fora as humilhações. Botaram até cachorros em cima dele para mordê-lo. O rapaz foi sequestrado por essa comunidade, foi mantido em cárcere por vários meses e sofreu inúmeros episódios de espancamento. Eu conheço ele e algumas pessoas da família. Eu também entrei em contato com a família do Onésio, que foi assassinado. 

Teve um outro Episódio de maus tratos e violência na comunidade terapêutica Esdras, que teve muita repercussão. Você vê que todas elas têm um nome bíblico. Lá teve uma paciente que foi brutalmente espancada. Ela tinha sido sequestrada, estava em um cárcere também. Logo depois desse caso de espancamento, veio a notícia de uma outra moça de uma outra comunidade que também foi brutalmente espancada até a morte. O laudo médico dela concluiu que ela sofreu sufocamento, encontraram uma meia dentro da boca, já no pescoço. Uma das sobreviventes do espancamento faz parte do nosso movimento. O movimento tá nascendo, tá crescendo entre as vítimas de comunidade terapêuticas, cobrando reparação e o fim desse tipo de instituição. A gente tenta também crescer com consciência política. A gente sabe que reparação não tem como acontecer no total, porque é uma violação atrás de outra violação e muitas vezes ocorrem mortes.  O que repara a morte?

Nós também compomos a recém formada Frente Nacional pelo Fim das Comunidades Terapêuticas e a gente espera que o governo Lula aceite essa proposta de transição.

26/01/2024

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Celio Calmon

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