Médico psiquiatra e psicoterapeuta
A entrevista foi concedida a Solange Calmon no programa “Inclusão” da TV Senado – março/2023
Solange – Historicamente, as práticas de tratamento para os transtornos mentais foram ineficazes e muitas vezes cruéis. como o senhor avalia essas práticas doutor?
Augusto Cesar – Acho que a gente tem que voltar um pouco até o como nasceu a psiquiatria para a gente poder contextualizar essas práticas. Então vamos voltar até o século 18 com o Iluminismo, que priorizava a razão, a iluminação, as luzes, inclusive o século 18 foi chamado século das luzes. Um dos acontecimentos importantes desse século foi a revolução francesa e do bojo da revolução francesa, a Assembleia Nacional da Revolução Francesa indicou Felipe Pinel para intervir em duas instituições: Hospitais Bissetri e Salpêtrière.
Então, no final do século XVIII, Pinel ao chegar lá, tentou separar o que que era social e o que que era mental, porque essas instituições abrigavam mendigos, pessoas abandonadas, pessoas com transtorno mental, pessoas que tinham problemas com a justiça. toda sorte de desvalidos que provocavam muito tumulto na rua de Paris à época. Quando o pinel chegou lá, foi encarregado de dividir aquela população em o que era social e o que é que era mental. Pinel começa a fazer esse alinhamento dos quadros e estabelece a primeira classificação da psiquiatria: mania delírio idiotia e demência. São quatro conjuntos de diagnóstico que então inaugura a psiquiatria. assim começa a formulação do arcabouço teórico da psiquiatria como campo de conhecimento a partir de Pinel.
Naquele tempo, o tratamento era com infusões e sangrias, mas ele entendia que o problema mental estava relacionado a uma questão moral. Então, ele desenvolveu uma pedagogia que implicava em uma visão moralista do transtorno mental e implicava também em castigos que eram a reclusão, o confinamento, sangrias.
Solange – O que eram essas sangrias?
Augusto Cesar – Eles entendiam da medicina na idade média que tinha um derrame de bile negra no sangue e essa sangria era para diminuir a quantidade da bile negra que estaria dando alterações, não só mentais, mas também de fígado, de sistema digestivo. O problema é que essa visão moralista de Pinel do tratamento foi legitimando a institucionalização dos pacientes mediante o confinamento, o ocultamento e por conseguinte a exclusão social e familiar. Então, as pessoas eram institucionalizadas e ficavam por um tempo indeterminado nessas internações, perdendo o vínculo com a sociedade, com a família.
Solange – E depois século 18, como desenvolveu o tratamento psiquiátrico?
Augusto César – Do século 18 até agora, existe um senso comum de se falar da moralidade em cima do que nitidamente é um transtorno mental. No tratamento moral tinha o confinamento, tinha a célula solitária chamada de quarto forte para paciente que estava mais agitado, mais inquietos. A gente tem que entender que na época não existia nenhum tipo de medicamento que pudesse fornecer essa contenção, basta dizer que o primeiro neuroléptico de fato antipsicótico eficaz foi sintetizado em 1952, ou seja, ele não tem nem 100 anos ainda, tem 70 anos. A medicação ajudou a desinstitucionalizar esses pacientes. Não só a medicação, mas também a visão da reforma psiquiátrica como sendo um tratamento em liberdade.
Solange – Foi o italiano Franco Basaglia, já no século 20, que promoveu uma revolução na psiquiatria. Quais eram suas principais propostas?
Augusto Cesar – Franco Basaglia, psiquiatra italiano, era, além de psiquiatra, neurologista, antropólogo e terapeuta existencialista. Já no começo da década de 60, ele formulou um trabalho onde ele apontava a necessidade do tratamento em liberdade, já com a perspectiva da superação do hospital psiquiátrico. Ao longo da década de 60, ele foi diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia e foi preparando a desconstrução desse modelo de tratamento de confinamento e reclusão dentro do hospital psiquiátrico.
Ao final, ele conseguiu de fato abrir as portas do hospital de Gorizia e mediante a criação de vários núcleos de saúde mental na cidade ele conseguiu, desospitalizar esse paciente. É a reforma psiquiátrica mediante a intervenção. O próprio Basaglia falava da necessidade de intervir junto poder público para mudar o modelo de saúde mental público e trabalhar junto aos profissionais de saúde para transformar, para levar uma reflexão sobre o trabalho que estavam fazendo e a perspectiva do tratamento em liberdade. A ideia era intervir também na formulação do modelo de assistência em saúde mental, com essa diversidade de serviços que podem dar suporte a transformação do hospital psiquiátrico, que é centralizador, mediante interação em centros comunitários, hospital dia, lares substitutivos. Isso é um conjunto de elementos que facilitam o trabalho em liberdade, integrado a vida familiar, social e profissional.
Solange – Aqui no Brasil, nos anos 80, surgiu o movimento antimanicomial. Em 2001, foi aprovado a Lei Paulo Delgado que instituiu a reforma psiquiátrica. O que mandou a partir dessa iniciativa?
Augusto César-A luta de antimanicomial remonta a década de 70. O marco inicial é a greve dos médicos da Diretoria de Saúde Mental do Rio de Janeiro. Ao longo dos anos 80, foi então sendo construídas as formulações de Franco Basaglia, já não somente na psiquiátrica, mas na perspectiva ampliada, que levou a política nacional de saúde mental, que é a decorrência da lei 10.216. Em 87, na cidade de Bauru, no congresso de psiquiatria, foi lançado o slogan “sociedade sem manicômios” e que foi criado então o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.
Até então, a legislação sobre tratamento psiquiátrico era referendada da legislação de 1934 ainda no governo Getúlio Vargas. Então, a lei 10.216 não é só uma lei que organiza dentro do SUS o sistema de atenção em psiquiatria. Ela é muito mais do que isso porque ela confere também o status de cidadão para o paciente psiquiátrico.
Solange – Nos últimos anos observamos alguns retrocessos nas políticas públicas e no tratamento de pacientes com transtornos mentais. Quais retrocessos o senhor destacaria?
Augusto César – Acho que o retrocesso principal é a emenda constitucional 95, que estabelece um teto de gastos, não pelo teto de gastos, mas, porque sacrificou enormemente o investimento e financiamento das políticas sociais, incluindo a Política Nacional de Saúde Mental. Em seguida, o Ministério da Saúde emitiu entre novembro de 2016 e maio de 2019, algo em torno de 15 resoluções. portarias, decretos que foram desmontando a estrutura do funcionamento da política nacional, dos seus dispositivos, focalizando o incentivo à internação psiquiátrica. Separou também a saúde mental da parte de álcool e outras drogas. Essa parte de álcool e outras drogas serviu para incentivar a disseminação das comunidades terapêuticas.
Solange – O que deve ser alterado urgentemente para as políticas públicas de saúde mental acontecerem da melhor forma?
Augusto Cesar – A prioridade é retomar o financiamento e investimento no sentido da desinstitucionalização dos pacientes e fomentar ampliação dos serviços de saúde mental e integrados as equipes da família, a atenção básica em saúde, porque a saúde mental não pode funcionar dissociada do conjunto geral da saúde pública.
Solange – Ainda se observa um grande estigma, preconceito e desinformação da sociedade em torno da loucura como mudar essa realidade?
Augusto Cesar – Difícil, mas a gente vem fazendo isso toda vez que a gente faz algum evento, seja científico, ou um evento artístico, seja uma exposição, seja uma assembleia, uma reunião, seja uma discussão dentro de um centro comunitário sobre a questão. A gente vai fazendo o que se chama de intervenção cultural, ou seja, a gente vai intervindo na cultura manicomial.
Vou lhe dar um exemplo de intervenção cultural. No carnaval de 2012 um grupo constituído por profissionais de saúde, familiares, usuários, enfim todo esse conjunto criou um bloco de carnaval que se concentrou no Caps que ficava ali, na plataforma superior da rodoviária. Foi ali o primeiro Caps 24 horas de álcool e droga que a gente inaugurou. A gente percorreu a plataforma superior da rodoviária cantando, tocando, batucando, descemos pelas escadas rolantes e fomos para plataforma inferior da rodoviária. Esse bloco foi crescendo e a gente começou a ter adesão da população também cantando as tradicionais músicas de carnaval que todo ano se canta, inclusive porque todo mundo conhece e pegando pelas filas dos passageiros esperando o ônibus chegar e todo mundo se envolvendo. também com a adesão das pessoas em situação de rua que participou também do bloco, da folia do bloco junto com pessoas em situação de rua, também junto com usuários de droga em situação de rua.
Não é só isso esse tipo de iniciativa que você vai transformando o senso comum da visão do louco pautada na irresponsabilidade, na periculosidade na incompetência e tudo mais para ver que são pessoas que são absolutamente capazes de desenvolver e abrir um espaço dentro da sociedade.
Solange – Esse bloco não saiu mais no carnaval?
Augusto Cesar – Desse bloco surgiu um outro bloco que é de uma ong que fica na 408 Sul chamada Inverso. Ela criou o bloco do Rivotril que sai todos os anos no pré-carnaval e durante o carnaval. A Inverso é uma ong da sociedade que tem pacientes em situação de alta e que também já são atendidos no Caps. O bloco do Rivotril é de certa maneira decorrente desse primeiro bloco que aconteceu no carnaval de 2012 entendeu? então a população tomou conta e vai seguindo a intervenção cultural permanente.