Entrevista com Marcelo Moura Valle, jornalista, fotógrafo e coordenador do Espaço Travessia do Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio de Janeiro

Entrevista e fotografias: Gabriella Massa de Campos, jornalista, fotógrafa e arteterapeuta.

Como você integrou o Espaço Travessia?

Recebi o convite para assumir o cargo lá no Núcleo de Ciência e Saúde, até então era coordenado pelo Vitor Pordeus, ele é psiquiatra e médico hipocrático. Ele é um dos criadores do Hotel da Loucura, que hoje é o espaço Travessia. Ouvi dizer que ele fez muitas coisas bacanas durante um bom tempo, mas que ele se afundou na própria imagem, no próprio ego dele e passou a trabalhar muito com um certo tipo de teatro de rua, do Amir Haddad. Teatro Popular, que pega coisas eruditas enfim, ele se perdeu e foi exonerado do cargo e o superintendente de saúde mental e me chamou para assumir o lugar dele. Foi um processo muito duro porque o Vitor era muito querido por algumas pessoas e odiado por outras pessoas. Uma coisa que já percebi na saúde mental é que são pessoas que estão num estado de vulnerabilidade muito grande, afetiva, social, psíquica. Então, são muitas vezes facilmente manipuláveis.

Como são atendidos os doentes e abandonados que sofreram algum tipo de violência, psicológica ou que passam necessidade?

Geralmente nem são atendidos. Nos hospitais psiquiátricos os pacientes têm nome e tem cor. São pessoas que estão ligadas a uma série de fragilidades sociais, psicológicas psíquicas e violência física e mental.

E que não estão muito adaptadas como as pessoas consideradas normais, diferentemente elas têm algum tipo de reação, alguma dificuldade de adaptação para viverem fora de espaços voltados para este tipo de cuidado?

A gente está falando de pessoas que estão à margem da sociedade para terem chegado a este estado. Marginalizados pela própria sociedade. O manicômio é criado para moralizar a sociedade. Os indesejáveis são colocados ali dentro, não só por questões de saúde mental, por sofrerem alguma coisa no sentido psíquico, mas por serem indesejáveis. Quem são elas? As mulheres, os negros, os loucos, as prostitutas, marginalizados de várias formas. Os pobres. Ao longo da História, isso tudo vai colocar pessoas dentro dos manicômios. E até hoje, mesmo tendo passado pela Reforma Psiquiátrica por avanços e retrocessos, o manicômio continua mais do que nunca funcionando.

Verde é a cor da saúde mental, o que você pode nos contar sobre o que alimenta a esperança de viver, mesmo com o enfrentamento diário?

Se há um universo amplo, se questionamos o tempo inteiro se existe vida em Marte, ou se existe vida no universo e esse universo é infinito. E a gente não é nada nele. Eu também acredito que o nosso universo interior, pode ser maior ou tão grande quanto esse universo que está no exterior. Eu acho que o cérebro é um mistério. Que nossas condições humanas são um mistério e que tudo que se encontra dentro é muita coisa para ser descoberta. O que Freud contou foi como acender um isqueiro na escuridão. Estamos engatinhando nisso porque o mundo exterior acaba se sobrepondo às necessidades de sobrevivência, assim eu sempre lembro das necessidades internas.

O Dia Nacional da Luta Antimanicomial é o 18 de maio. As manifestações em torno desta data estão surtindo que tipo de efeitos?

O que move as pessoas? Quando eu entrei para trabalhar no Travessia, algumas enfermarias ainda funcionavam. Tinha pessoas que estavam ali há anos. Apesar de haver um processo de desinstitucionalização muito grande, que chamamos de “DESINS”. O que que é isso? São pessoas que foram institucionalizadas, suas vidas inteiras foram jogadas dentro de um manicômio, ou boa parte dessas vidas, passaram um período de longa internação. Um período que pode corresponder de 4 a 50 anos. Tem pessoas que nasceram no manicômio, fruto de estupros, de violência física, ou foram abandonadas pelas suas famílias. Mais frequentemente as famílias não tinham condições de manter os filhos.

Lá no Espaço Travessia quando havia internações qual era o tipo de tratamento oferecido? Fármacos, terapia artística, arteterapia?

Estamos falando de uma instituição que tem 100 anos.

Pergunto sobre o período em que você se encontra lá?

Mas o meu período é uma herança dos períodos anteriores. Então, as grades nas janelas são para conter, as camas têm uns arcos para amarrar as mãos.

E o armário de remédios?

Houve um momento em que a medicalização deu um “BUUMM. Você tem as amarras químicas em vez das amarras físicas. Mas também se fala em contenção, violência. Quando eu comecei não havia mais o eletrochoque, mas ele foi usado durante muito tempo, banhos frios, uma série de violências físicas para contenção do corpo, dos espíritos exaltados. O que fica de herança? A instituição coloca uma hora para comer, um horário para se vestir, um horário para dormir, um uniforme. Então tudo isso de alguma maneira eu peguei também, embora quando eu comecei no Instituto Nise da Silveira, os uniformes já não existiam mais. Alguns ainda usavam. A vida está institucionalizada neste sentido. Você não tem escolha. Não pode abrir uma geladeira, não pode apagar a luz, não pode olhar o relógio, tudo é absolutamente condicionado.

Não tem autonomia? Mas tem a disciplina da arte, você pode dizer que funcionou?

Não tem autonomia nenhuma. Esse negócio da Arte é uma mentira. De dois mil pacientes lá dentro, quais eram as pessoas de fato que acessavam a Terapia Ocupacional? Trinta ou menos, talvez vinte pessoas. Quem selecionava 50 pessoas entre essas duas mil? Nem todo mundo tinha condições de estar ali

Mesmo recentemente podemos observar que a arteterapia e a terapia ocupacional e outras formas de arte, estão presentes, mas nunca foram a prioridade do Instituto. A gente não tem verba nenhuma, pouquíssimos recursos. O que focamos durante muito tempo, foi uma desinstitucionalização, passando também por uma questão da arte, mas esta arte sempre colocada em segundo plano. Prioritário sempre foi poder cuidar destas pessoas para que elas pudessem sair do hospital.

No meu entendimento, a Reforma Psiquiátrica foi para criar um lugar para que outras pessoas compartilhassem saberes e poderes com os psiquiatras. Porque dentro de uma hierarquia hospitalar, para darem assistência ou cuidados, deu super errado, pois eram apenas três psiquiatras, às vezes até menos, para atenderem 2.000 pessoas.

Insustentável!

É insustentável porque eles ficavam ali para receitar remédios e aplicar o eletrochoque. Passar a pensar numa outra oferta de cuidados na promoção da saúde mental. Isso para mim é um grande legado. Entram psicólogas, arteterapeutas e uma série de trabalhadores que vão modificar o cenário interno na área da psiquiatria no Brasil e no mundo. As formas de cuidado. Eu fui muito criticado por isso, por ser jornalista, um jornalista assumir a cadeira de um psiquiatra. O meu papel não é de medicar alguém, nem avaliar ninguém, mas dar assistência. O meu papel é cuidar de uma outra maneira. De promover a saúde mental. Eu não estou ali fazendo arteterapia, eu abro encontros entre artistas. Quando as pessoas desciam das enfermarias e eu ouvia a mulher com sotaque nordestino, eu puxava uma música do sertão nordestino e as relações mudavam imediatamente. Quando a gente recebe uma pessoa do Candomblé e ela começa a falar de Exu, ela está trazendo cultura para você. Ela está te respondendo de outra maneira, de certa maneira é preciso estar preparado para entender o quê está sendo dito ali.

Onde hoje são as Galerias de Arte?

Estamos cravados na Zona Norte do Rio, no Bairro do Engenho de Dentro, que faz limite com seis ou sete bairros próximos, além da linha amarela que é o caminho que liga a Zona Norte à Zona Oeste. Neste sentido, estamos muito bem-posicionados, por outro lado, para uma cidade hegemônica, estamos muito mal posicionados, porque a Cidade que interessa aparecer é a da Zona Sul, a que estamos agora.

Agora você está com alguns artistas fazendo Residência Artística lá? Então você estendeu um convite para que eles possam ter um espaço próprio e criarem suas exposições?

Os espaços expositivos, que eu convido as pessoas para exporem seus trabalhos, mas essa exposição é necessariamente uma relação de troca, porque ela proporciona encontro entre artistas. Eu acredito que Arte chama Arte. Nossas últimas três exposições que foram durante a Pandemia, agora estamos na quarta.

Vou falar sobre o que fizemos no período da Pandemia: Arte agoniza mais não morre,

Em homenagem ao Nelson Sargento, em torno dele foram 22 artistas convidados, a grande parte deles do subúrbio, ou de Niterói ou da Baixada, a outra foi Brasil Delivery, que eu acho muito significativo pois tratava desta questão da saúde mental, do aumento da violência contra a mulher, as pessoas ficaram confinadas e as relações foram se deteriorando, pois muitas vezes não tinha encontro.

Precisamos pontuar, estamos dentro de uma Instituição de Saúde Mental que foi um Manicômio, talvez um dos maiores da História do Brasil. Foi o Centro Psiquiátrico Nacional que depois virou Hospital Pedro II. Já existe um estigma para entrar naquele lugar. As pessoas entram esperando ver vestígios da loucura, ou ver os loucos. Há quem chegue lá e quer ver alguém pintando, mas na cabeça deste indivíduo precisa ser um louco que está pintando. E dizem: “Olha como esse cara pinta! Apesar de ser louco ele pinta.” Existe a sombra da loucura neste lugar e muitos dos nossos visitantes são ligados a área de saúde, para que a gente quebre os bloqueios para levar outras pessoas até lá, ainda é muito difícil, pois a própria Instituição esteve fechada muito tempo, pois não era aberto ao público porque aquelas pessoas não podiam ser expostas ao público. Por isso estamos nesta etapa de construção e de abertura para que as pessoas conheçam este espaço de memória muito importante.

 Por não estar tão vinculado a ser só memória, mas ter sido escavado e entrado nas camadas mais profundas, talvez por antecedentes pessoais, mas sim entrando no barco e na proposta de se enxergar mais a Galeria de Arte como um lugar para a Elite e as enfermarias como uma prisão? 

Eu acho interessante, o nome já é simbólico, Travessia: trevere que é ver além, ver do outro lado. Eu que batizei esse nome, o escolhi a partir de um livro do Guimarães Rosa, o Grande Sertão Veredas, que ao meu ver é uma grande travessia e não é à toa que o protagonista tem o nome de Riobaldo que é um rio que está em travessia, e Guimarães escreveu outros contos sobre o tema da loucura como Sorôco, sua mãe , sua filha; A  Terceira Margem do rio; Sarapalha, que desvelam esta questão.

Ali é um entre lugar para se estar, como a terceira margem do rio, a loucura para mim é um entre lugar. Está entre a consciência e o inconsciente, é um estado entre o humano e não humano, é também um estado ancestral e futurístico, está mesmo ocupando um entre lugar, um lugar para não se estar por muito tempo

Uma passagem um mergulho que é separado por uma linha tênue entre o imaginário e o racional, onde as coisas se perdem e se encontram?

De alguma maneira sim. Essa potência recebe pessoas que vão de forma espontânea como o curador do MASP, o diretor do Museu do Pontal que foi lá há pouco tempo, a Sociedade de amigos do Museu e todos ficam muito impressionados com o que nós temos naquele momento, seja em termos de espaço físico, de camadas de representação como da qualidade das obras, pela riqueza pela diversidade e por não esperarem que ali dentro tenha tudo aquilo. Quando eu subo as escadas levando as pessoas, saímos da frieza que tem nos dois andares inferiores e chegamos com uma explosão de cores.

Tem muita liberdade dentro deste espaço. Eu conheço e percebo que quem gosta de usar paredes para riscar, escrever pintar, fazer grafites, coisas penduradas coladas com fitas banana, fitas coloridas. Todos os materiais podem entrar neste impulso artístico como um tijolo, uma pedra.

Trabalhamos dentro de uma lógica que quase não tem recursos, por isso aproveitamos materiais, até mesmo o prego, a tinta por exemplo: se uma parte é vermelha e a outra amarela não é somente uma escolha, mas também a falta de mais tinta de uma cor só. E fica muito parecido com o interior do Brasil, quando o cara pinta a casinha dele com várias cores diferentes. As vezes não é uma opção estética, mas uma de falta de recursos. Misturamos isso com a possibilidade de deixar rastros de todos os artistas que passaram ali antes.

Que outras referências de pessoas ilustres que foram representadas pela arte, como a Dra. Nise da Silveira, a ex-vereadora Marielle Franco e o fotógrafo João Roberto Ripper?

Eu não sei o que é considerado como uma pessoa ilustre! São também ilustres, Dona Ivone Lara, passou por lá e tem uma frase dela no chão. Cada pessoa que passou por ali é uma ilustre pessoa, uma “luz pessoa, e é deles que temos que falar. Existem pessoas homenageadas porque com sua luz conseguiram iluminar e alcançar mais pessoas, seja através da mídia, da psiquiatria, do teatro, da música, temos Paulo Freire, e outras tantas desde aquelas que tiveram muita importância até as que tiveram menos visibilidade.

Você entende que etimologicamente a “Empatia” vem de em = in= dentro; pathos doença, e que isto significa reconhecer a doença que está dentro do outro, ou como costuma-se dizer, colocar-se no lugar do outro para uma sensibilização dos problemas alheios e inclusive os próprios? Então a empatia, que faz parte do afeto catalizador, da maneira como se lida com as pessoas de forma saudável é entender a doença. Você concorda?

É interessante pensar na etimologia da palavra empatia, mas os estudos culturais mais recentes, a ciência, o paradigma da ciência do século XVII para cá, no século XVIII sobretudo, é o racionalismo. Ele coloca a ciência como paradigma das relações entre seres humanos e conduz a sociedade ocidental como um todo. “Penso, logo existo”, Sistema cartesiano, principalmente no capitalismo se divide em grupos de produtivos e improdutivos, úteis e inúteis, existe o mecanicismo das relações também. A ciência fica dividida entre o eu sujeito e o objeto.

 Entendo (risos) Se eu penso, logo existo, então se eu não penso logo não existo. Mas nada impede d’eu ocupar este que eu chamaria de lugar da busca. A loucura tem um pouco o significado da vida, a busca de um sentido, de uma libertação, campo fluente da arte. A arte liberta, a terapia liberta, e consolida o EU não de uma forma egóica, mas de uma forma criativa, criativa e relacional.

A loucura é o lugar da desrazão e por estar fora deste lugar de produtividade de abre a possibilidade de criar outras formas de estar no mundo. Misturamos todo mundo e tratamos como iguais. Mas será verdade? Se têm pessoas que estão em sofrimento, que não está ao nosso alcance. Neste sentido é que te falo da empatia. Vamos nela até a página dois, porque quando alguém está em crise com uma dor absolutamente infinita, naquele momento sem saída e tem uma entre tantas frases da Dra. Nise, que ela diz de se andar na beira do abismo, e que ela precisa colocar um escafandro e mergulhar junto. Esse grau de empatia eu não tenho, não consigo mergulhar nessa profundidade toda, não tenho o aparato científico, técnico, sensível e afetivo.

É muito profundo e muito verdadeiro da forma como você coloca e do jeito que você sente uma situação de crise. Quem lida com pessoas feridas nunca vai fechar as suas próprias. Ela só vai se regenerando e abrindo, mas é saber lidar com a dor.

Sinceramente eu penso que fazer cinco anos de faculdade, fazer residência médica, ter um aparato instrumental que te proteja de alguma situação, mas isso não quer dizer que você seja vulnerável, podem ser psiquiatras, psicólogos, terapeutas que são feridos o tempo todo e se isso acontece, não tem carapaça que faça com que você se proteja. As camadas de conhecimento, de proteção que a gente vai colocando porque é vulnerável, somos humanos, estamos na mesma posição da pessoa de quem se está tratando.

Marcelo por favor deixe uma mensagem final, um recado ou continue a conversa, como você preferir.

Não sei! Eu sempre fui apaixonado e de tempos em tempos vou me apaixonando, por um assunto novo, pela antropologia, literatura, pelas ciências sociais, pelos saberes mais humanísticos, vamos dizer assim, porém nunca passei pela filosofia, tudo que estamos tentando fazer é produção de sentido. A cultura nada mais é do que sentido para a vida, para uma resposta, a gente se aglomera em casinhas, umas sobre as outras, se aglomera em favelas, por questões sociais que são óbvias, mas também por questões de produção de sentido, somos conduzidos a uma disputa permanente, qual o sentido que está prevalecendo, qual a narrativa que está prevalecendo, e entram as relações de poder.

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