Thiago Petra é psicólogo antimanicomial, professor e carnavalesco.
Como você entrou na luta antimanicomial?
Eu queria fazer História, mas na época de escolher o curso, eu participei do Festival de Cinema de Brasília e vi o filme “Bicho de 7 cabeças”, com o Rodrigo Santoro. Engraçado que quando ele foi chamado para apresentar o filme, ele foi super vaiado porque o festival tinha mais gente de esquerda e o Rodrigo era da Globo e quando o filme acabou, o público o aplaudiu de pé por 15 minutos. (29/11/2000). O trabalho dele como ator foi deslumbrante. Isso me chamou muita atenção pela causa e porque eu tenho problema de saúde mental na família, minha mãe.
Isso me despertou alguma coisa e estava na época da inscrição no curso para a faculdade e aí escolhi a psicologia. Eu tinha 17 anos e o Rodrigo no filme também tinha 17 anos quando ele foi internado. Eu entrei no curso já sabendo o que eu queria, mas na época não conhecia ninguém da luta antimanicomial. Lá no curso, encontrei uma professora, Tânia Inês, que introduziu esse mundo da luta antimanicomial lá. Hoje sou padrinho do filho dela.Eu fiz a monografia e trabalhos na faculdade, sempre sobre loucura, esquizofrenia.
Eu fiz um estágio de 1 ano no Hpap sob a supervisão dela e o grupo de alunos que também estagiaram queriam revolucionar lá, mudar as condições precárias.
Em 2006, quando estava terminando à faculdade eu conheci o Movimento Pró-saúde Mental do DF, que teve a Eva Faleiros como coordenadora por uns 14 anos.
Eu tinha a opção de fazer residência na Inverso, mas não queria fazer isso num Centro de Conivência, eu queria um manicômio. Mas depois do estágio, a Tania me disse que deveria trabalhar num lugar muito legal, que seria a Inverso eu já formado. A Tania gostava muito de mim e me apoiou para ir trabalhar como voluntário na Inverso. Aí fui pra lá e assim que me formei, consegui um emprego na Clínica Recanto pra trabalhar com dependentes químicos. Era barra pesada também.
Entrei na Inverso em 2007, me apresentei a Eva, a Alice, a diretoria da época. Primeiro participei das oficinas que já existiam, pra me integrar. Foi aí que comecei a perceber que tudo da saúde mental ficava num espaço escondido, fechado, as oficinas ficavam nas clínicas e na época eu trabalhava com mosaico. Aí pensei no mosaico e fiz a oficina fora, que se chamava mosaico de ideais. A gente escolheu um lugar pra fazer o mosaico, a gente pegava uma tela pra colocar os mosaicos e aí a gente colocava o trabalho na cidade. Eu quis fazer uma intervenção urbana com os mosaicos de ocupar os espaços da cidade para mostrar as expressões da loucura.
Daí, a gente criou durante 2 anos uma praça, uma esquina, a Esquina da lucidez, na 408 norte. Tinha uma pracinha, a gente pediu a autorização, colocamos mosaicos nas mesas, nas cadeiras e uma placa em mosaico, “Esquina da lucidez”, era uma loucura lúcida, essa esquina foi ganhadora de um prêmio nacional.
A gente ocupou e teve uma grande inauguração, com gente do circo, forró, poesia, era o “louco sarau”. A gente montou em 2007 e ganhamos esse prêmio nacional “Loucos pela diversidade”, a gente foi ao Rio buscar, foi o ministro da Cultura que deu, foi criado pelo Gilberto Gil, mas foi dado pelo Juca Ferreira.
A TV Sã foi um dos projetos da Inverso. Como funcionava?
Em 2007 teve a praça, em 2009 teve o prêmio, mas ficou difícil sustentar a oficina de mosaico é. Então, conseguimos fazer outro tipo de intervenção urbana, com estêncil, com lambe-lambe, a gente juntava cartazes, foi uma oficina de grande repercussão porque eles escolhiam o tema, a gente pegava a ideia que eles tinham e colocava na cidade. Daí, com essa intervenção veio a ideia do carnaval. é a ideia de intervenção urbana. Os frequentadores da oficina falavam que não iam por medo, a família proibia porque tinha pânico, paranoia. Então, a gente criou um contexto seguro onde tem os cuidadores, se a pessoa tivesse alguma crise, seria acolhida.
Aí surgiu o bloco em 2011, dez anos depois da Inverso. O nome do Bloco do Rivotrio surgiu mesmo dos frequentadores, O remédio Rivotril estava no auge, mas eu tive alguma resistência eu não queria dar o nome de remédio, mas esse nome chama. No Rio você tem os blocos “Loucura soberana”, o “Pirado pirou”.
A TV Sã foi um projeto que a Tânia coordenou, essa minha professora.A Tânia é muito importante. A TV Sã saiu em 2009, com apoio da TV Pinel, do Rio de Janeiro e de uma parceria com o Ceub para editar os vídeos. Esse material ainda existe, (a Tânia tem o DVD), mas com o tempo não teve continuidade. Foi conduzindo por um tempo pelo Elias.
Vocês tiveram algum apoio parlamentar para esses projetos?
A Frente Parlamentar foi importante, mas só vejo algumas atuações pontuais, sem muita continuidade. Não vejo o Congresso com uma ação engajada, um combate às comunidades terapêuticas ou a criação de novos serviços. Mas tem algumas pessoas que há muito tempo estão engajadas, como a Erica Kokay, que participou de tudo. Temos agora o deputado Gabriel Magno, do PT, que é cria da Arlete Sampaio. Ele herdou o capital político dela, era do gabinete dela, foi chefe de gabinete ela passou o bastão pra ele. Ela foi muito importante para o movimento.
Além da lei federal (Lei 10.2016/2001 da Reforma Psiquiátrica), que é muito boa, temos uma lei distrital ótima a 975, de 1995, feita pelo Cristovam Buarque e nela já previa o fim do manicômio. Apesar das leis boas, nós temos contra uma relação de poder. As comunidades terapêuticas têm um lobby muito grande. Eles pegaram o tema das drogas com todo aquele moralismo da sociedade, tem aquela coisa que existe uma epidemia do crack e com isso, você tem a volta de tratamentos de clausura com objetivo moral mesmo. Então, os deputados mais conservadores, tratam a questão das drogas para justificar os manicômios. Quem assinou isso (apoio às comunidades) foi a própria Dilma em um ato de desespero e o próprio Lula não peita muito isso por causa da força evangélica no Congresso.
Agora estou no Caps álcool e outras drogas em Santa Maria e Samambaia, estou dando supervisão a eles, e quando se fala em drogas, até a esquerda é conservadora porque há o medo de soltar as pessoas dos manicômios e as ruas se encherem de zumbis, de coisas ruins.
O que você acha da nova ministra da Saúde, Nísia Trindade?
A Nise da Silveira veio antes da reforma psiquiátrica, ela fala essas coisas na década de 40, a antipsiquiatria inglesa é da década de 60, Basaglia na década de 70. Ela, a Nise, é realmente de vanguarda, ela mudou tudo, começou a chamar as pessoas pelo nome, ela e a equipe dela, que também tinha a Dona Ivone Lara. “Não se cure além do necessário” Eu acho essa frase da Nise genial porque a gente tá sofrendo uma hiper adaptação, a gente tá marcado por uma sociedade pela ação, pelo excesso, pela alta performance, tem aí os coaches, tudo pra socializar o sujeito e essa sociedade, onde a gente não tem mais um grande chefe, agora nós somos os grandes chefes e com isso, tudo se tornou mais cansativo porque a gente está lutando contra nós mesmos, sempre com esse sentimento de insuficiência, de fracasso. A gente está se comparando muito com os outros, é uma sociedade da performance, sem uma pausa, sem uma reflexão.
A gente tá vivendo agora uma alienação pelo excesso, antes era por uma falta de informação, de acesso as coisas. Agora o excesso está nos alienando. Temos que ter o direito a preguiça, a loucura, que é uma condição humana. Para alta performance tem os psicotrópicos, psicofarmos para poder potencializar, são muitos remédios. Aí você tem uma sociedade comprimida.
O Conselho de Saúde do ministério da Saúde estuda incluir as religiões afro-brasileiras como parte do tratamento em saúde mental do governo. O que você acha?
Eu me interesso muito e estudo as religiões africanas, os mitos, os orixás, e pelo que já visitei e conheço, eles são realmente dispositivos de cuidado, de participação e pertencimento. Eu fui Testemunha de Jeová por 20 anos, então tive as duas vivencias. Os terreiros acolhem as pessoas do jeito que são, acolhe uma pessoa LGBTQUIA, com pertencimento e não tem uma relação com o dinheiro, não tem o dízimo, é muito espontâneo. Acho que o terreiro sabe dialogar com o Brasil profundo.
Você concorda que falta entrosamento dos coletivos de saúde mental aqui no DF?
Sim, hoje tem muitos coletivos porque foi ativado no primeiro governo do Ibaneis o programa de residência em saúde mental. A própria Inverso nasceu como residência de saúde mental porque o Cristovam criou o programa, o Roriz foi eleito e acabou esse programa. Então, essa turma montou a Inverso e a Eva Faleiros, orientando e dando supervisão pra eles. Quando você tem muitos residentes, jovens em serviço, quando eles acabam com o programa em residência, por 2 anos, eles acabam criando coletivos. O problema é que os coletivos não dialogam tão bem, tem práticas isoladas e aí não tem tanta repercussão, alcance.
Mas estou vendo que está melhorando, com toda essa questão sobre o Bolsonaro, acho que os movimentos se uniram mais. A gente até fez um movimento no Sol Nascente, aí vai todo mundo junto, depois desarticula. Eu vejo que tem encontros quase mensais da casa da Gucci, que foi coordenadora do Observatório de Saúde Mental da UnB. A Gucci é uma pessoa importantíssima no movimento e no máximo de 2 em 2 meses tem uma reunião na casa dela no Pakway.
E o Bloco do Rivotrio?
O Rivotrio nesse ano foi muito forte e houve reuniões de 12 a 15 coletivos. Realmente tem causas muito isolados, embora tenha melhorado recentemente. Esse já é um tema que não mobiliza tanto assim. Ultimamente, sim, por conta da pandemia e aí a saúde virou uma tema em destaque. Então é muito ruim fazer um ato isolado. O bom mesmo é a reunião de vários coletivos. É uma característica de Brasília, talvez não tenha coletivos fortes, tem pessoas fortes. Você vê uma pessoa de um coletivo que consegue fazer alguma coisa, O Rivotrio era assim, era eu e a Terezinha, agora tem um coletivo, tem o Cajuína que está com a gente e então temos um grupo forte.
Eu fiquei 10 anos no Movimento de Saúde Mental do DF, Muitas vezes os grupos não se agregam. Cada coletivo diz que tem a verdade sobre a saúde mental, “eu sou mais antimanicomial do que você!”. Então, fica uma briga de vaidade. Por exemplo, já tentaram fechar o Caps Candango do Setor Comercial Sul. A gente diz, vamos chamar o Instituto de Saúde Mental. Mas alguns dizem eles não antimanicomiais, mas eu discordo. A gente tem que agregar, parece um outro evangelho “eu tenho a verdade”. Mas com o Bolsonaro a gente levou um susto. Se a gente não ficar junto, não ia sobrar nada. Não dá pra ficar isolado.
Nós ficamos mais acomodados quando a gente teve por 10 anos com governos de esquerda, não tinha uma figura forte pra enfrentar, como a gente teve depois o Bolsonaro.
Em dezembro vamos ter a Conferência Nacional de Saúde Mental. Qual sua expectativa?
Na Conferência a expectativa é altíssima, há muito tempo que não tem Conferência, vai ser no primeiro ano do governo Lula, com os movimentos ressignificando a luta. Então estou vendo essa abertura maior de diálogo e de força. Temos uma ministra sabedora da causa.
Tem muito também a questão de raça e pobreza. Quem tem dinheiro e comete algum delito, que tenha um bom advogado não vai preso, é tratado em uma clínica particular. Então esse tratamento tem que ser para todos, uma política pública. Então, a gente tem que falar isso para a sociedade e criar mais serviços.
O estigma e o preconceito contra os loucos ainda são muito grandes. Como reverter isso?
As maiores atrocidades do mundo foram feitas por não loucos. Na verdade, houve uma inversão, essas pessoas foram violentadas e não são necessariamente violentas. Concordo que existe uma certa imprevisibilidade, o comportamento do louco é mais imprevisível. A pessoa tá usado droga, a gente não sabe o que pode acontecer. Também é um medo nosso, talvez a gente possa também enlouquecer, a fome enlouquece, uma história de amor enlouquece, o medo do outro é o medo da gente.
21/08/2023