Entrevista com Rogério Barba, presidente do Instituto Barba na Rua

Rogério Barba idealizou uma associação sem fins lucrativos, o Instituto Barba na Rua, que realiza, desde 2015, vários tipos de atendimentos à pessoas em situação de rua no DF e entorno.

Dentro do Instituto Barba na Rua sempre quis trabalhar com a saúde mental, só que não é meu ramo. Sei trabalhar com a população de rua, vivi na rua por 25 anos, faço acolhimento, converso. A comida que levo pra rua não é pra manter eles na rua, é pra ouvir o cara de barriga cheia. Eu defendo que os direitos da população de rua sejam garantidos dentro do que ela quer.

Se a pessoa chega pra mim e fala “Barba, quero ir para uma casa de acolhimento para eu poder sair e entrar quando quiser”. Aí a gente vai encaminhar. Outro diz “Eu quero ir pra uma comunidade terapêutica pra eu possa fazer um tratamento onde não proíbe o cigarro”. Digo, beleza. Às vezes a pessoa pede uma comunidade terapêutica que tenha abstinência do cigarro, do álcool e das drogas. Outros pedem encaminhamento para um CAPS.

Eu não vou falar com a pessoa “vamos pra uma comunidade terapêutica. Tem que vir com a demanda da pessoa em situação de rua. Eu já tive 14 internações. A minha primeira internação foi em 1988, quando conheci o crack.

Eu nasci na rua em 1971, mas não virei menino de rua. Alguém me levou pra um orfanato. Fui criado pelo Estado por 18 anos. Quem deu meu nome foi o Estado, não tinha cadastro de pai ou mãe, não tinha nada. No meu documento de nascimento não tem nada, só consta o meu nome. Com 14 anos eu abria e fechava a rádio de Cajuru. Eu era menor, mas eu podia trabalhar porque a rádio era do orfanato onde estava internado. Em 1988, saí do orfanato quando completei 18 anos e fui trabalhar em São Carlos na Rádio Progresso como operador de som.

Aí eu fui para o álcool, fui para maconha, fui para cocaína. Eu tinha 18 anos. Quando eu saí do orfanato tinha umas coisas para que não fui preparado. Com 3 meses que saí, conheci o crack e o crack me jogou na rua. Aí as pessoas perguntavam se eu fui pra rua porque não tinha pai nem mãe. Não, foi por causa do crack. O Barba foi morar na rua por causa do uso abusivo do crack. Na época em que eu usava a cocaína e o álcool eu consegui me controlar e não fazia eu perder o emprego. Quando eu usava crack, comia comida do lixo e bebia álcool de posto de gasolina. Eu perguntei a mim, meu Deus, o que estou fazendo aqui? Esse cara não sou eu. Aí eu procurei uma igreja e pedi ajuda e me encaminharam para o “Desafio Jovem”, em Rio Claro, de formação evangélica.

Com 3 meses eu saí de lá do tratamento esse local era baseado na Bíblia. Era oração e bíblia, oração e bíblia. Aí eu saí fui trabalhar, mas não consegui me segurar. De 1989 para lá eu tive 14 internações em casas de recuperação evangélicas e uma no projeto Cristolândia, que também é evangélico. Eu e a minha internação às vezes era porque eu levei uma facada, um paralelepípedo na cabeça, eu entrava em coma alcoólica e os traficantes queriam me pegar. Então era um refúgio muitas vezes eu quis sair dessa situação.

Eu cheguei em Brasília em 2010 e em 2014 e conheci uma mulher chamada Elvira Batista Ela trabalhava na Receita Federal e eu chamava ela de mãe. Aí eu peguei uma amizade muito grande com ela eu chamava ela de mãe E aí eu pedi uma ajuda a ela e ela me internou no projeto Cristolândia que era da Igreja Batista, O projeto começou na Cracolândia e eles tinham como base o cristianismo. Eu relutei muito na Cristolândia porque eu era contra os princípios daquele tratamento, mas eu precisava ficar ali. Muitas vezes o pastor me mandava embora e eu não ia. Eu estou aqui para ver como eu conseguiria vencer o álcool e o crack. Eu não estava ali para buscar uma religião. Então, eu entrei em conflito com a instituição. Mesmo assim eles me entenderam e eu fiquei um ano e oito meses lá. Depois de um ano que eu saí de lá, eu pude estudar e trabalhar e foi quando entrei na Revista Traços.

Todo mundo me pergunta quando deu o estalo. Primeiro foi porque uma mulher me levou lá. A pessoa que me acompanhou ficou comigo pela primeira vez, porque as pessoas me levavam e não ficavam comigo. Toda semana ela ia me visitar. Isso fez com que eu me apegasse. A chave virou depois de 1 ano nessa instituição. Depois de um ano de tratamento eu tinha livre arbítrio de entrar e sair sozinho Eu sabia o que eu não podia fazer: beber e usar droga Se eu fizesse uma dessas coisas, eu perderia tudo que eu consegui um ano lá. Mas eu já podia sair, procurar serviço e estudar. Apesar da raiva que passei no começo, compensou no final. Eu não era obrigado a orar como os outros internos, eu poderia sair e eu saía mesmo.  

Eu luto pelas comunidades terapêuticas, mas não sou daqueles que aceita tudo. Se você entrar numa comunidade terapêutica eles vão dizer que 60% das pessoas que entraram lá concluíram o tratamento. Beleza, mas quem são essas pessoas? Faça uma pesquisa para saber onde estão essas pessoas e como elas estão.

Todas as comunidades terapêuticas autorizam as pessoas a saírem. Nas clínicas psiquiátricas não pode sair. Eu falei para Samantha, que é uma voluntária da saúde mental do Instituto: “eu posso levar você para conhecer uma comunidade terapêutica para você entender o funcionamento de uma comunidade terapêutica”. Elas têm regras e condutas que a gente precisa fiscalizar, não é fechar as comunidades, tem que fiscalizar.

Nós temos as casas de recuperação que não financiadas pelo Estado. São financiadas pelas igrejas. Então, aquele tratamento é da responsabilidade das igrejas. Mesmo assim, o Conselho Federal de Psicologia recomenda a fiscalização do trabalho deles. Nós temos também as clínicas psiquiátricas. Nelas as pessoas ali internadas não podem sair. Nas comunidades terapêuticas aqui você pode entrar e sair quando quiser, mas se sair não pode voltar. Só se for uma saída terapêutica, ai sim, pode voltar. Eu sugiro que as comunidades tenham um controle digital de entrada e saída da instituição.

O Instituto Barba na Rua conta hoje com quatro ex-moradores de rua que tocam o Instituto na ponta, mas ele administrado por uma por uma diretoria eleita pelos membros. Sou eu, o Barbinha, que é meu filho adotivo. Eu tirei ele da rua e encaminhei para a comunidade terapêutica em que eu fui tratado. Tem o Eliseu, que ficou internado numa casa de recuperação em Goiânia. Tem o Elias que faz tratamento no CAPS e o Alexandre que é como se fosse um irmão pra mim. Ele me ajudou demais na formação do Instituto e ajuda muito até hoje. Não faço nada sem consultar o Alexandre.

O projeto Barba na Rua surgiu depois que saí do projeto Cristolândia. A maior dificuldade quando a gente sai de uma instituição é se colocar no mercado de trabalho. Muitas pessoas que terminam seu tratamento não têm aonde ir. Acabam ficando no serviço lá dentro das instituições, ficam como obreiros. Fica assim: “Eu te dou a comida, eu te dou pouso e você toma conta dessas pessoas.”

Saindo dela, eu decidi trabalhar com as pessoas em situação de rua porque eu preciso mostrar a eles que tem jeito. Aí nasceu o coletivo Barba na Rua. A gente ia pra rua pra dar atenção a essa população, mostrar pra eles que além do crack e do álcool tem vida, tem esporte, cultura e lazer. A gente fazia esse trabalho até chegar a pandemia. Quando ela chegou, eu voltei a morar na rua pra dar atenção às pessoas que moravam na rua porque não tinham comida, eles comiam do lixo. Quando o governo fechou tudo, esqueceu que tinha muita gente passando fome. Estava todo mundo em casa, só ficou o pessoal que já morava rua. Nem álcool e drogas eles compravam, não tinha traficante nenhum na rua. Fui pra rua e fiz uma campanha pra arrecadar alimentos. Consegui alimentação para 300 ou 400 moradores de rua que ficavam no Setor Comercial.

Quando eu morava na rua, eu disputava comida do lixo com os ratos. Chegava na lata de lixo, batia, os ratos saiam e a gente comia e eu nunca fiquei doente. Nos 25 anos que vivi na rua, nuca vi alguém ter ficado doente por comer comida do lixo, Eu tomei álcool de posto de gasolina durante 10 anos.

Aí chegou a necessidade de ter um instituto. Pra eu receber doações de empresários, tinha que ter CNPJ e a gente montou o Instituto em 2020. Quando a pandemia acabou, a gente achou que tinha que ter algo mais além da comida para a população em situação de rua. A comida e a roupa são muito pouco para essas pessoas. Eu levava copeira, música e uma biblioteca pra eles entenderem que há vida além daquela realidade que eles viviam.

Eu sempre falo, morar na rua não é um problema sério. O Instituto Barba na Rua se preocupa com o sofrimento que a rua traz a essas pessoas. O Instituto nasceu para a gente fazer um trabalho comunitário que diminua o sofrimento dessas pessoas que moram na rua. Ela pode morar onde quiser, desde que ela não sofra.

Você não tenta tirar essas pessoas da rua?

Ele que decide. Sabe por quê? Nesses 25 anos que morei na rua…Eu fiquei 14 anos, na rua porque as vezes eu saia da rua pra fazer a vontade daquele pastor da comunidade que às vezes me pagava bêbado. No dia seguinte, eu tava na rua de novo. A minha perspectiva ali era diminuir o sofrimento daquelas pessoas que estavam ali. Eu fiquei como morador de rua usando o álcool e o crack. Já passei 6 meses sem tomar banho. Eu entendo por que passei 6 meses sem tomar banho. O que me fazia sofrer ali na rua era o crack.  Não que eu seja favorável a liberação das drogas. Eu quero trazer para o Instituto o pessoal da saúde mental para estudar melhor o assunto. O pessoal da saúde mental vai ter a oportunidade de trabalhar com pessoas que estão na rua e com aquelas que já saíram da rua e ver o que dá pra gente construir.

Quando a gente fala da Cracolândia, o que a gente pensa? Lixo. Você já ouviu falar de maconhodromo? Quando a gente fala em Cracolândia, vem aquela imagem de um monte lixo. Você sabe o que faz as pessoas viverem naquela situação? É pra fumar maconha? Não. Tem duas coisas que seguram aquele pessoal nessa situação. O crack e o alcoolismo. Quando você for num evento meu, vou mostrar a você, sem as pessoas perceberem, vou falar: “aquela turma ali é do crack. Aquela outra turma não é do crack.” O que diferencia as pessoas são as roupas que eles usam. O usuário do crack vive numa prisão em que ele só vive pro crack. Eu ganhava 180 ou 200 reais e ia comer do lixo. Eu era um profissional da esmola, eu nasci na rua, eu tinha as técnicas de pedir. Eu preferia usar o crack e comer do lixo. O crack escraviza. Você sabia que se deixasse o pessoal só fumar maconha, sem usar no crack, seria outra coisa. O crack não deixa a gente trabalhar. Se você pegar um cara na rua com alto grau de drogadição, um cara que veio de outro estado, tem família e tudo e perguntar por que ele está na rua. É por causa do crack. O crack é tão poderoso, mas tão poderoso e prazeroso…ele é gostoso. Quem disse que crack é ruim? Eu não fumo porque vou voltar a morar na rua, porque se eu tivesse opção de voltar a fumar.

Quando saí do projeto Cristolândia, fui trabalhar na Revista Traços. Eu tinha a cara da revista e foi lá que conheci o Paulo Miranda, que vice-presidente da TV Comunitária na época e hoje é o presidente e era o chefe da comunicação da Sedes (Secretaria de Desenvolvimento Social.) Ele me convidou em 2015 pra fazer um programa na TV Comunitária. Eu faço um programa desde aquela época, o Paulo me convidou para ser diretor do estatuto da TV Comunitária e nessa última eleição, fui indicado como 2º vice-diretor da instituição. Hoje eu tenho um programa semanal na TV. Hoje eu recebo pra fazer o programa e é mais uma renda que recebo. Eu posso levar que eu quiser para o meu programa e a TV já me ajudou muito a ter um ciclo de amizades muito grande.

O que é hoje o Instituto Barba na Rua?

O Instituto Barba na Rua é uma instituição que faz um trabalho para diminuir o sofrimento das pessoas em situação de rua, onde a gente procura ouvir as pessoas para o encaminhamento que as pessoas querem, e não o que eu quero ou outra pessoa da diretoria da instituição quer.

O Instituto oferece oficinas de ensino profissional?

A partir do momento que comecei ir à rua, eu pensei em oferecer alguma coisa para essas pessoas, Vou abrir um empreendedorismo social. Aí comecei a fazer cursos de consertar celular, fazer chinelos. Infelizmente, com o tempo, vi que isso não era pra essas pessoas. Eu falo isso porque fiz o projeto Qualifica a Rua Barba na Rua. Essas pessoas não conseguem ficar dentro de uma sala de aula por quatro horas pra fazer um curso. Além disso, as peças pra fazer o curso de conserto de celular são muito caras. Aí eu pensei: já que não vou fazer o curso para as pessoas em situação de rua, vou fazer para aqueles que estão na Casa de Acolhimento, mas também não deu certo. Aí eu fiz os cursos na comunidades terapêuticas.

Quantas Casas de Acolhimento tem hoje no DF?

Tem 15, entre homens, mulheres, pessoas trans e família.

Quem faz esse encaminhamento ?

DF que faz o serviço de abordagem e encaminha para a casa de recolhimento. Por exemplo, um cara quer ir pra casa de acolhimento. Qualquer pessoa pode ligar. Só que lá não é tratamento, é só acolhimento. Decidi fazer os cursos em Taguatinga onde tem 3 unidades de acolhimento porque lá tenho público. Comecei. Não deu certo, o que me atrapalhou? Eles estavam na aula e chegou o Bolsa família. Acabou a frequência dos alunos. Até que eu falei pra nossa equipe. Esse curso não é pra esse público.

As pessoas em situação de rua recebem o Bolsa Família?

Uns 80%, mas tem que ter documento e ter o CadÚnico. Também recebem o Auxílio Vulnerabilidade, o DF sem Miséria. Alguns recebem o auxílio aluguel e por falta de uma política correta, a pessoa não aluga, fica na rua.

Quando eu terminei meu tratamento na Cristolândia, eu disse que não ia sair.  fui acompanhado pelo Centro Pop. Sou fruto da política do Centro Pop. Quando eu terminei meu tratamento, eu disse que não ia sair. Eles disseram que eu tinha que sair. Eu disse, eu posso recair. Eles disseram que eu tava bom. Respondi, “tô não”. Posso recair amanhã. Ele falou, “você toma vergonha que isso não é real, você quer ficar aqui pra não pagar aluguel”. Na verdade, era isso, eu não queria pagar aluguel. “Você tem que sair pra dar lugar pra outro. Se quiser, você aluga um imóvel perto, você vem aqui, pode ser alimentar, mas você tem que sair, já tá aqui há 1 ano e 8 meses”

Aí fui ao Centro Pop. Eu recebia os benefícios por um ano de “Auxílio aluguel”, recebi por um ano o “Bolsa Família” e o “DF sem Miséria”. Recebi por um ano o “Auxílio Vulnerabilidade”. Somando esses benefícios todos, eu consegui por um ano me virar. Por que deu certo pra mim? O cara que tá na rua tá usando o crack, vai fazer o que com benefícios desses?

Eu pergunto a você, nós temos agora o Moradia Primero (Programa do Governo Federal). Pra quem é esse Moradia Primeiro? Noventa por cento dos que moram hoje na rua tem casa, noventa por cento deles tem família. Você sabe por que não estão com a família deles? Por causa do crack. Quando um cara consegue fazer um tratamento, a família recebe ele.

Nós já desenvolvemos um projeto que tratava de moradia para as pessoas em situação de rua. O projeto se chamava “Cuidando da vida”. Era o projeto “Moradia Primeiro, que tinha recursos do Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas)  e idealizado pelo projeto “Cuidando da vida” em parceria com o Governo do DF e a instituição “Namastê, que oferecia às pessoas uma moradia por um ano pra essas pessoas em situação de rua voltarem a ter uma moradia, ter um acompanhamento psicológico e social.

Quando eu falo da política pop rua eu sou crucificado. Eu falo que quem tá na Cracolândia não é por problema de moradia. Eu falo isso com certeza porque em 2016, eu e o governador Rollemberg, a revista Traços a Namastê fizemos um projeto de um prédio para 12 pessoas em situação de rua. Conseguimos moradia pra 48 pessoas no Setor Comercial Sul de Brasília. Em 4 meses construímos o prédio. Tá lá. O Centro Pop escolheu as 12 pessoas pra morarem lá. Sabe quantas pessoas tem lá hoje? Uma pessoa. O problema dessas pessoas é moradia? Quando eu falo, sou criticado, massacrado. O que eu falo é baseado na minha experiencia. Eu vi isso tudo.

Eu desafio qualquer pessoa ir à Cracolândia, pegar uma pessoa, botar ela dentro da sua casa, dar um trabalho e receber tudo de melhor. Garanto que a pessoa não vai passar mais de uma semana lá dentro porque o problema dele não é esse, falta de moradia. Quando eu tava na rua, os meninos da abordagem social me chamavam de Leco-Leco. Eles falavam pra eu ir pra uma Casa de Acolhimento. “Sai da rua, você vai ficar doente” e eu fazia uma pergunta; “Na Casa de Acolhimento eu posso entrar e sair na hora que eu quiser, eu posso fumar pedra, posso beber? Não. O que que vou fazer lá, vou dar trabalho, vou sofrer porque meu problema na época não era moradia, era drogadição.

O que você acha do trabalho das equipes do Consultório na Rua?

Eu entrevistei hoje a secretária de Saúde e perguntei quando eles vão contratar motorista porque hoje não tem motorista O maior erro do Consultório na Rua e ele não estar na rua. Nós temos as Casas de Acolhimento em várias cidades. Elas já estão na mão do Estado. As pessoas que estão nas Casas de Acolhimento devem ser tratadas nas UBS (Unidades Básica de Saúde). Nós ainda temos que discutir muito o Consultório na Rua. Ele é quase invisível, ele não está ali toda semana conversando com as pessoas. Nós tínhamos um Consultório na Rua dentro do Centro Pop, e tiraram de lá. O Centro Pop era mais fácil de ter contato com a população de rua. O Consultório de Rua é importante para a população em situação de rua. Os culpados não são os técnicos. Eu falei com um doutor uma vez que disse: “Barba, eu quero ir pra rua, mas não tem motorista. Eu como médico, não posso dirigir a ambulância.”

Sobre as Casas de Passagem eu tenho uma grande dúvida. O terceiro setor presta um serviço que o governo não faz. Nós tempos um serviço que gasta muito dinheiro  por mês, que faz abordagem social. Tem 12 equipes, vão na rua, aborda a pessoa, tira documento. O que adianta uma pessoa em situação de rua que perde o documento uma semana depois? É experiencia própria. Se gasta um dinheirão com isso. Por que não pegar as pessoas, levar para a Casa de Acolhimento? Só que eles chegam nesses locais e lá não tem porta de saída, que é o mercado de trabalho. O meu motorista está há mais de um ano dentro de uma Casa de Acolhimento. Ele é voluntário no Instituto, mas tem uma ajuda de custo. Quando sobra uma vaga de trabalho, a gente encaminha para os prestadores de serviço voluntário do Instituto. Como a gente conhece muita gente, quando surge uma vaga de trabalho, a gente encaminha a gente encaminha para Ele tá na casa de acolhimento há um ano, já era pra ele sair de lá, o tempo normal é de 6 meses. Não se pensa no mercado de trabalho. Essas pessoas que estão nas casas de acolhimento não estão preparadas para o mercado de trabalho. O meu motorista trabalhou  10 anos como motorista de caminhão, mas ele não tem qualificação. O Estado deveria qualificar esse profissional, como ele vai arrumar trabalho? Hoje o caminhão tem computador, é complicado, tem que ter qualificação. Se o GDF ligar pra uma empresa e dizer que precisa de emprego pra 10 pessoas em serviços gerais, eles vão abrir a porta, mas precisa que o Estado queira fazer isso.

Qual sua opinião sobre os CAPS?

Sou muito crítico em relação aos CAPS. Vou te contar uma experiência negativa com o CAPS. Quando saí do projeto Cristolândia, eu fui pro CAPS pra fazer o acompanhamento que eu achava necessário. Conheci o CAPS quando era na rodoviária, foi pro Touring e depois foi pro SCS. Quando saíram do Touring, foram pro Setor Comercial Sul porque o alvo era a população em situação de rua que se concentrava lá. Quando eu cheguei lá, me disseram que o CAPS estava proibindo o pessoal usar o banheiro do SCS e realmente tinha um papel dizendo que a população de rua que não estava fazendo tratamento no CAPS não podia usar o banheiro. Fui ao CAPS pra reclamar e eles disseram que o pessoal estava escondendo droga no banheiro. Aí eu falei, vocês tão numa igreja, num convento? Vocês estão no meio de uma Cracolândia. Vocês são um órgão público de rua e tem que permitir essas pessoas a usarem o banheiro. A diretora insistiu que não ia permitir. Aí fui fazer uma denúncia no Ministério Público e Conselho Nacional de Direitos Humanos. O ministério público foi lá e aceitou a denúncia.

Aí se criou algo que o Barba é contra o CAPS. Não sou contra o que não dá é o CAPS ou qualquer órgão público, não permitir a população em situação de rua usar um banheiro público, é uma questão de saúde. Aí as pessoas vão ficar fazendo suas necessidades na rua, tendo um banheiro no CAPS?

Em relação aos CAPS, vou contar uma experiência que tive. Uma vez uma mãe me liga e pede pra eu resgatar o filho dela do SCS. Eu falei que não faço isso. Ela disse que foi recomenda a deixar seu filho em um CAPS no plano piloto. Só que a pessoa quando fica no lá, a família vai embora e ele fica de 15 a 30 dias internado. Ele pode sair a qualquer momento. Aí a família vai embora feliz da vida. Quando a pessoa sai do CAPS, ele vê uma porção de barraquinhas vendendo crack. Ele não tem dinheiro, mas tem um tênis, uma camisa boa. Aí o traficante fala: irmão, eu te dou 5 pedras nesse tênis seu. O cara vai resistir? Aí o cara topa e assim começa. Aí o cara sai do CAPS e vai viver junto com a população em situação de rua. Por quê? Ele já aprendeu a convivência na rua, aprendeu a pedir dinheiro, a fazer pequenos furtos. Quando a mãe vai ver o filho, ele está rua consumindo crack.

Você pergunta, então o CAPS tem que sair do Setor Comercial Sul? Eu não tô falando isso. Eu tenho que escolher, posso ter o melhor CAPS do mundo, 5 estrelas, desde que eu acabe com o tráfico. Não tem jeito, o crack. Ou eu tiro o crack ou tiro o Caps. O tráfico é se dá nas proximidades do posto policial. Por experiencia própria, crack e Caps juntos não funcionam. Uma pessoa mora na Cracolândia, às 10h, vai pro caps, fica de 10h ao meio-dia numa oficina, almoça no caps e quando saí, vai pra rua outra vez onde estão os traficantes.

O que você acha das residências terapêuticas? Aqui em Brasília não tem nenhuma.

O Instituto Barba na Rua quer montar um grupo de saúde mental para desenvolver a ideia da criação de uma grande residência terapêutica. Não adianta meter o pau nas comunidades terapêuticas se você não tem nada a oferecer em troca. Fechar as comunidades terapêuticas pra jogar essas pessoas na rua? Quando eu montei o Instituto,

Nós temos um grande sonho, que é construir uma comunidade livre. Eu tinha um amigo meu, o índio, era um cara perigoso, ele era valente. Então, ele ficava no buraco do rato (Cracolândia do DF) e metia a faca nos outros. Hoje, ele voltou para a família dele. Por que o índio saiu da rua? Voltou pra família dele, casou e teve filho. O que fazia o cara virar uma pessoa em situação de rua? O crack. Então, tenho que lutar contra o que? O crack.

Eu trabalho muito com tratamento comunitário. É uma coisa nova que tem em 10 países, é a RAISS (Rede Americana de Intervenções em Situações de Sofrimento Social). Existe em vários países, como Honduras, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Argentina. A gente se reúne uma vez por ano pra discutir o tratamento comunitário.

Hoje nós temos duas políticas aqui no Brasil, a Redução de Danos e a Saúde Mental e eu luto pra implantar o tratamento comunitário. Esse tratamento quer diminuir o sofrimento de uma pessoa que está naquela comunidade pela visão da própria pessoa, que está em situação de rua. Como é que eu faço pra você viver sem esse sofrimento? Por exemplo, você tá numa favela, eu preciso diminuir o sofrimento de quem está na favela. Mas qual o sofrimento de uma pessoa que está numa favela? Por exemplo, a questão do esgoto. Precisamos diminuir o sofrimento de uma ´pessoa em situação de rua, O problema é o álcool e o crack. Eu não vou tirar a pessoa da rua, ela que decide se vai ficar na rua ou não.

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Celio Calmon

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